Igrejas acusam Evo de criminalizar conversão
Novo Código Penal boliviano diz que recrutar pessoas para organizações religiosas pode render até 12 anos de prisão
Para pastor, presidente quer implantar ‘regime comunista’; governistas apontam uma ‘guerra de mentiras’ nas redes
A evangelização é um crime —tão grave quanto exploração sexual, venda de órgãos, turismo pornográfico e mendicância forçada, todos passíveis de sete a 12 anos de prisão na Bolívia, segundo o novo Código Penal do país.
Essa é, ao menos, a interpretação que grupos católicos e evangélicos vêm dando ao artigo 88 do texto, que inclui no pacote de crimes que tratam do tráfico de pessoas o “recrutamento para a participação em conflitos armados ou organizações religiosas ou cultos”.
A relação entre o presidente Evo Morales e denominações cristãs, que nunca foi das melhores, degringolou com a aprovação, em setembro, de uma lei que legaliza o aborto antes de oito semanas de gestação e quando a mãe é estudante ou tem dependentes.
O caldo entornou de vez com o novo código, que entupiu ruas bolivianas com protestos de religiosos. O pastor paulista Antonio de Novais Santos participou de um deles na quarta-feira (17), na cidade de Cochabamba. Ele mantém por lá sua Iglesia La Vid (Igreja A Videira) e, com outras lideranças evangélicas, acusa Morales de querer impôr na marra um “regime comunista-marxista” na Bolívia.
“A lei coloca a evangelização, fazer proselitismo, que é o que nós fazemos com o intuito de melhorar a vida da pessoa, no mesmo patamar de escravizar e traficar pessoas. Como pode?”, exclama.
Outro cisma: “Evo opta por ritos, feiticeiros incas em vez de chamar padres, pastores, de usar a Bíblia, para cerimônias oficiais”, diz o pastor. Em 2016, o presidente irritou líderes cristãos ao participar de um ritual indígena aymara para invocar chuvas no combate à pior seca do país em 25 anos.
Para Santos, não é o único indício de que o presidente busca conflito com a cristandade. Em 2010, o Legislativo aprovou uma lei que respaldava um currículo escolar regionalizado, podendo incorporar “componentes de espiritualidade e cosmovisão indígena”, como definiu à época o ministro da Educação. No Censo de 2012, 58% se declaravam não indígenas, embora Morales diga que são bem menos —muitos temeriam o racismo e prefeririam esconder as raízes. BOKO HARAM Com os ânimos acirrados pela legislação penal sancionada em dezembro, inicia-se novo round entre governo e religiosos. Políticos alinhados a Morales apontam uma “guerra de mentiras” nas redes sociais. O artigo 88 serve, segundo o presidente do Senado, José Alberto Gonzales, de vacina contra um correlato latino ao Boko Haram, grupo fundamentalista da Nigéria.
Porta-voz do MAS, partido governista, David Ramos Mamani acusa a “oposição de direita”, servil a “interesses internacionais do imperialismo”, de inventar “uma perseguição a igrejas”. O que de fato se mira, afirma, são “o sequestro de fiéis ou conversões forçadas, e isso não é novo, já estava em leis anteriores”.
Papo furado, diz à reportagem Carlos Alarcón, advogado constitucionalista e ex-vice-ministro de Carlos Mesa (2003-05), que precedeu a atual Presidência. “É provável que a intenção real seja aniquilar todos os direitos e liberdades que impedem [Evo] de ter o controle total da sociedade boliviana, como as liberdades do pensamento, a consciência, a religião e a expressão.”
Para Iván Lima, ex-ministro do Tribunal Supremo de Justiça boliviano, as igrejas sabem, no fundo, que o código não ameaça a evangelização. “Nossa Constituição protege amplamente a liberdade religiosa. O artigo 88 não pode ser lido isoladamente”, diz.
O que esses religiosos realmente querem, ao pleitearem a revogação de todo o Código Penal, é não permitir o abrandamento da legislação sobre o aborto, afirma.
O Brasil entrou na peleja via bancada evangélica da Câmara. Seu presidente, o deputado Hidekazu Takayama (PSC-PR), enviou ofícios à Embaixada da Bolívia e ao Itamaraty questionando o código “que vem consternando a população cristã não só do país, mas de todo o hemisfério”.
O embaixador do país no Brasil, José Kinn Franco, lamentou, em resposta a Takayama, a ação daqueles que “usam a mentira como arma” e destacou que a maioria dos militantes do governista MAS “professa uma religião”. IGREJA VS. EVO O arsenal de ilações, segundo o deputado Mamani, vem da “hierarquia eclesiástica boliviana, porta-voz da direita e com intenções políticas”.
Influente no clero local, a Opus Dei, movimento católico conservador, é uma das vozes mais críticas a Morales.
A Igreja Católica ainda tem a preferência de três em cada quatro bolivianos, segundo o Pew Research Center (no Brasil, metade segue o Vaticano).
O bispo Eugenio Scarpellini, da populosa El Alto, tachou de “hipócrita” a visita do presidente ao papa Francisco pouco após a aprovação do Código Penal. “Que ironia é isso ocorrer no dia em que o presidente está com o papa”.
Morales não se fez de rogado. No mesmo dia, postou no Twitter: “Meu irmão Francisco, como sempre solidário, humano e integracionista”.