Folha de S.Paulo

Catadores se casam em ‘despedida’ de lixão de Brasília

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DE BRASÍLIA

“Baiana, quando você arrumar um namorado, por que você não se casa no meio do lixão?” Era 2016. Ao ouvir a pergunta enquanto participav­a de uma exposição de fotos sobre a vida de catadores de materiais reciclávei­s, Valdineide dos Santos Ferreira, 63, até achou graça.

“Falei: tá bom, vou pensar.” E riu. Dois anos depois, lembrou da sugestão e teve a ideia: “Por que não?”

A cerimônia foi celebrada às 18h30 de quinta-feira (18), a dois dias do fechamento do lixão da Estrutural, em Brasília, considerad­o o maior depósito irregular de resíduos da América Latina.

Um tapete vermelho foi estendido em cima de uma área onde antes havia lixo, já coberta por terra. Em cima, altar e flores, escondidos do sol sob uma tenda instalada por funcionári­os da administra­ção regional da Cidade Estrutural, região que nasceu no entorno do lixão e hoje abriga cerca de 45 mil pessoas.

Após um dia de noiva a custo zero, financiado por um projeto social chamado Mulheres em Alta Estima, a noiva foi recebida no local com aplausos de outros catadores e flashes de uma multidão de fotógrafos que acompanhav­am a cerimônia.

“Quero que, mesmo fechado, os amigos e todo mundo lembre que aqui teve uma história de amor”, disse. VIDA NO LIXÃO O enlace ocorreu a poucos metros do lugar onde Baiana —também chamada de “Joelma do Lixão” por ser fã da cantora, cujo look imita— conheceu o noivo, Deoclides Brito, 38, há cerca de um ano.

“Via ele e achava bonito. Um dia, ele estava sentado descansand­o e resolvi perguntar: ‘É solteiro?’” Era. Assim que ouviu a resposta, correu para conversar e logo deu o aviso: “Mais tarde é lá em casa, tá?”

Ele trabalhava havia dez anos no lixão. Ela, há mais de 40. Chegou de Alagoinhas (BA) para morar na região da Estrutural por volta dos 18 anos, conta ela, quando em boa parte da área ainda havia mais mato do que lixo — atualmente, o lixão da Estrutural soma 40 milhões de toneladas de detritos acumuladas em 55 metros de altura.

Cerca de 1.200 catadores trabalham por lá. “Tem muito preconceit­o [com o lixão], mas é um lugar que faz parte da nossa vida”, diz o noivo.

Para Baiana, o casamento é uma forma de comemorar a união e também chamar atenção para o destino das pessoas que hoje sobrevivem dali. “Tinha muita gente que pagava creche para os filhos e tirava dinheiro para viver daqui. Agora, vamos para o galpão [ofertado pelo governo para acolher os catadores], mas só Deus sabe como vamos ficar.”

Apesar da apreensão sobre o futuro, Baiana é dessas que não perdem uma oportunida­de. Nesta quinta, aproveitou a presença das câmeras para fazer um pedido: queria atuar em novelas.

Na Estrutural, ela já é famosa: desde outubro, mantém um canal no YouTube chamado de Baiana Joelma, onde conta “causos” da região. “Quero mandar um beijo para todos os meus fãs”, diz a nova youtuber, que deve passar a conciliar os vídeos nos próximos dias com a nova rotina em um galpão de coleta seletiva em Ceilândia.

Segundo ela, o casamento é uma forma de ver o lixão ser fechado “com chave de ouro”. “Mas quem vai me dar esse ouro eu não sei, hein?”, ri. (NATÁLIA CANCIAN)

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Mateus Bonomi/Folhapress Os noivos Deoclides, 38, e Baiana, 63, que se casaram no lixão onde trabalhava­m

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