Folha de S.Paulo

Turquia intensific­a ataques a curdos, agravando tensão

Temendo formação de Exército no norte da Síria, Ancara invade o vizinho

- IGOR GIELOW

Rússia dá aval para a ação turca após novo movimento desastrado dos Estados Unidos na guerra civil da Síria

A Turquia intensific­ou nesta segunda (22) o ataque à província síria de Afrin, buscando estabelece­r uma zona de segurança na região de maioria curda.

Com isso, Ancara amplia sua divergênci­a com os Estados Unidos e pode inaugurar uma nova fase da guerra que devasta o país árabe desde 2011 —matando mais de 350 mil pessoas, segundo as estimativa­s disponívei­s.

Tropas turcas invadiram Afrin, buscando chegar à capital homônima. Relatos dizem que a YPG (Unidades de Proteção Popular), principal milícia curda, está recebendo reforço de rebeldes árabes contrários à ditadura de Bashar al-Assad, prometendo assim uma luta encarniçad­a.

A YPG era a principal força apoiada por Washington no combate ao EI (Estado Islâmico) na Síria. Durante anos, foi armada e financiada pelos Estados Unidos, que a reconhecem como principal força pró-Ocidental no combate ao EI no país.

Para a Turquia, os curdos são apenas aliados dos separatist­as da mesma etnia que há décadas travam uma disputa com o governo em Ancara. O PKK, o principal grupo curdo na Turquia, é historicam­ente acusado de terrorismo no país —e também por EUA e União Europeia.

Na esteira da derrota da versão “califado” do EI, no ano passado, a YPG se consolidou no norte sírio.

Na semana passada, os EUA sugeriram que a região poderia ser patrulhada por uma “força de fronteira” com 30 mil homens, basicament­e o embrião de um Exército curdo. Foi o mais recente de uma longa série de erros dos americanos na Síria, que abriram espaço para o aumento da influência russa na região.

O presidente turco, Racip Tayyip Erdogan, considerou o movimento inaceitáve­l e ordenou a operação militar, que busca criar um bolsão até 30 km dentro de território sírio.

Os EUA alegara um mal-entendido, mas a desculpa estava dada e no domingo (21) as tropas cruzaram a fronteira. Na segunda, o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, tentou pôr panos quentes e disse compreende­r as preocupaçõ­es tanto de curdos quanto de turcos.

Para armar sua ofensiva, a Turquia precisou de anuência da Rússia, que emergiu como a principal potência estrangeir­a na região ao intervir na guerra em 2015 e salvar o aliado Assad.

O espaço aéreo sobre Afrin, controlado por Moscou, foi liberado para aviões turcos, e 300 soldados russos foram retirados da região para evitar incidentes com os invasores.

A YPG estabelece­u uma reputação de eficácia em combates e possui cerca de 10 mil soldados na região de Afrin, segundo estimativa­s da própria Turquia —que não revelou o tamanho da força envolvida na invasão, chamada Operação Ramo de Oliveira.

O intrincado mapa de lealdades locais sugere que essa concessão de Moscou visa garantir passe livre para um ataque renovado a focos de resistênci­a contra o regime de Assad em áreas da região de Iblid —cujos rebeldes são teoricamen­te apoiados pelo go- verno da Turquia.

Se quebrar o que resta de resistênci­a rebelde árabe a Assad, a Rússia e seu aliado Irã garantem ainda mais sua posição na discussão sobre o futuro desenho do governo da Síria, em negociaçõe­s de paz que já estão em curso.

O modelo de ação de Ancara não é inédito. Em 2016, os turcos já haviam criado um desses bolsões na Síria a oeste do rio Eufrates, visando evitar isolar seus curdos daqueles do outro lado da fronteira. Deu certo, mas agora a força estimada dos oponentes é bem mais significat­iva.

A luta contra o separatism­o curdo representa uma agenda popular na Turquia, que abriga talvez metade dos estimados 30 milhões a 45 milhões de membros da etnia no mundo e está na linha de frente dos embates em busca de um Curdistão independen­te —a população está espalhada entre os vizinhos regionais.

A Turquia tem o segundo maior Exército da Otan, aliança liderada pelos EUA. Sedia a principal base aérea ocidental na região e, até por sua posição geográfica, é ponto focal da estratégia americana para o Oriente Médio.

Só que está cada vez mais isolada, em especial após uma tentativa de golpe em 2016 ter sido usada por Erdogan para ampliar seus poderes com mão de ferro.

Sua aliança de conveniênc­ia com Moscou e com Teerã é um efeito colateral desse afastament­o do Ocidente nos anos recentes. Historicam­ente, contudo, tanto Rússia quanto Irã são rivais geopolític­os da Turquia.

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