Folha de S.Paulo

CRÍTICA Espetáculo tece potente manifesto transexual

Com boa encenação, Cia. Pessoal do Faroeste combina tom político e melodrama em ‘O Assassinat­o do Presidente’

- BRUNO MACHADO AVALIAÇÃO S

FOLHA

Para além da crítica ao cenário político brasileiro atual, dois elementos conferem um brilho peculiar a “O Assassinat­o do Presidente”, da Cia. Pessoal do Faroeste.

A primeira é o diálogo com o bairro paulistano da Luz, região que norteia o projeto artístico do grupo há quase duas décadas. A outra é a contribuiç­ão a um dos mais acalorados debates atuais, o da representa­ção e da representa­tividade de travestis e transexuai­s nas artes cênicas.

Na primeira cena da montagem, o personagem Ulisses (referência à “Odisseia” de Homero), interpreta­do pelo também autor e diretor Paulo Faria, arma em punho, se apresenta ao público: figurão da Boca do Lixo, ele controla a prostituiç­ão e o tráfico, moedas de troca nas suas negociaçõe­s com os gabinetes de Brasília.

Pode-se imaginar que Ulisses é o protagonis­ta do espetáculo —papel que, na verdade, cabe a Penélope, personagem de Leona Jhovs, prostituta contratada para animar a noitada que antecede, como anuncia o nome da peça, o atentado que matará o presidente.

A dramaturgi­a empreende um esforço para desfazer a caricatura. Em nada Penélope lembra a paciente donzela da obra de Homero e tampouco a travesti estereotip­ada de tantas ficções contemporâ­neas.

Trata-se de um papel de grande potência realçado pela intensidad­e de Leona, que consegue, simultanea­mente, elevar a personagem ao status de mulher fatal e vocalizar o drama comum de tantas ruim regular transexuai­s: a despeito de sua qualificaç­ão profission­al, não consegue arranjar trabalho e precisa se prostituir para sobreviver.

O discurso da personagem ganha força extra devido a um fato inescapáve­l: Leona é também uma mulher transexual e ativa porta-voz da luta pela representa­tividade trans nas artes cênicas. Não sem ironia, sua Penélope é uma atriz que não consegue papéis na televisão, no teatro e no cinema. ROCAMBOLES­CO Mas não basta ser oportuna, a dramaturgi­a também precisa ser bem encenada. Com elegância, a direção se esquiva do tom panfletári­o e dilui o conteúdo político em reviravolt­as rocamboles­cas que ganham consistênc­ia graças ao competente trabalho da cenografia, da iluminação e da trilha, executada ao vivo.

Tais elementos colaboram para que, sob um olhar desatento, “O Assassinat­o do Presidente” seja apenas um suspense melodramát­ico bem orquestrad­o, mas as diversas camadas do texto, bem exploradas pela encenação, provam o contrário.

Se eliminar o presidente representa a subversão da ordem e o decorrente reinado do caos, que Ulisses quer como legado, Penélope sabe que não será esse ato o responsáve­l por dar fim ao machismo que, todos os dias, dizima mulheres, transexuai­s ou não. A personagem, então, assume sua vocação para a liderança revolucion­ária.

Num tempo em que transexuai­s lutam para fazeremse ouvidos e visíveis nas mais diversas esferas da sociedade, “O Assassinat­o do Presidente” torna-se um manifesto, e a Penélope de Leona Jhvos é, provavelme­nte, uma das primeiras heroínas travestis do teatro brasileiro. QUANDO seg. a sex., às às 20h; até 26/2 ONDE Sede da Cia Pessoal do Faroeste, r. do Triunfo, 301, tel. (11) 3362-8883 QUANTO contribuiç­ão voluntária CLASSIFICA­ÇÃO 18 anos AVALIAÇÃO muito bom

 ?? Rodrigo Reis/Divulgação ?? Leona Jhovs e Paulo Faria em ‘O Assassinat­o do Presidente’
Rodrigo Reis/Divulgação Leona Jhovs e Paulo Faria em ‘O Assassinat­o do Presidente’

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