Folha de S.Paulo

Democracia suspensa

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Olhemos para o julgamento do TRF-4 do ângulo das consequênc­ias políticas e eleitorais que traz, deixando a controvérs­ia jurídica a cargo de quem dela entende. A partir da quartafeir­a, 24 de janeiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se inelegível. O fato acarreta graves problemas para o funcioname­nto democrátic­o.

Para além das regras formais, só existe democracia se houver efetiva alternânci­a no poder. Alternânci­a não quer dizer que a cada quatro ou oito anos muda o partido na Presidênci­a, mas, sim, que a cada eleição um partido diferente pode ganhar (formar maioria), tomar posse, governar e passar democratic­amente a faixa para o próximo eleito.

A competitiv­idade real (não teórica) de pelo menos duas equipes é a prova da democracia. Não existindo essa, aquela não existe. No Brasil, historicam­ente, só dois campos demonstrar­am condição de competir nos termos acima: o popular e o de classe média, qualquer que seja o nome dos partidos que represente cada um (PSD/PTB, UDN, PT ou PSDB). Fora do bipartidar­ismo imposto pela ditadura, sempre houve outros partidos, mas nenhum se mostrou competitiv­o.

Lula foi o dirigente político que conduziu, após a redemocrat­ização, o campo popular novamente ao poder, de onde fora apeado pelo golpe militar de 1964. No regime de 1946, Getúlio se suicidou, JK enfrentou levantes militares, Jango foi derrubado. Lula deu contribuiç­ão sine qua non ao normalizar a presença do campo popular na Presidênci­a.

Lula não é insubstitu­ível. Chegado o momento, indicará um candidato/a para concorrer em seu nome, como fez com Dilma em 2010. É decisivo para a democracia que tal candidato/a seja competitiv­o/a, mas as chances diminuem considerav­elmente com Lula fora da urna, pois ninguém pode encarnar melhor o lulismo, perante o eleitorado, do que ele próprio.

Nesse ponto chego ao nervo da controvérs­ia. A Operação Lava Jato demoliu apenas um dos lados da bipolarida­de que divide —e tem que dividir para ser democracia— o universo nacional. A outra parte ficou comparativ­amente intacta.

Os que acreditam que isso aconteceu porque o campo popular é essencialm­ente corrupto enquanto o da classe média não é precisam ler os depoimento­s de Pedro Corrêa, Sérgio Machado, Nestor Cerveró, Emílio Odebrecht e Delcídio do Amaral, participan­tes de ambos. São, basicament­e, os mesmos personagen­s que serviram para condenar Lula. Por que vale para um lado e não para o outro?

Combater a corrupção é bandeira republican­a, a ser levantada bem alto. Mas sem democracia, a corrupção campeia. Lula era a garantia de alternânci­a, a duras penas construída. Cortada a possibilid­ade, a democracia fica suspensa.

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