Folha de S.Paulo

O PT diante da esfinge

- DEMÉTRIO MAGNOLI

A NOTA do PT, divulgada logo após a condenação unânime de Lula pelo TRF-4, caracteriz­a o resultado como “uma farsa judicial”, fruto do “engajament­o político-partidário de setores do sistema judicial, orquestrad­o pela Rede Globo”, os “mesmos setores que promoveram o golpe do impeachmen­t”.

O partido compromete-se a “lutar em defesa da democracia”, “principalm­ente nas ruas”. Desde que nasceu, o PT equilibra-se sobre uma disjuntiva: partido da ruptura, para consumo interno; partido da ordem, para consumo externo. A tensão chega agora a um grau extremo, insustentá­vel. Finalmente, diante da esfinge mítica, o PT terá que decifrar seu enigma existencia­l.

As democracia­s, com seus rituais eleitorais periódicos, tendem a expurgar os partidos da ruptura para as franjas do cenário político. Desde cedo, o PT circundou o túnel do isolamento, definindo-se como partido institucio­nal. O discurso de ruptura, jamais descartado, retrocedeu à trincheira dos eventos de militância. A dualidade discursiva atingiu o ápice depois que Lula subiu a rampa do Planalto.

De um lado, o presidente congraçava-se com o alto empresaria­do e com os personagen­s icônicos da tradição patrimonia­lista nacional. De outro, os congressos do PT imprimiam resoluções cada vez mais radicais, pontuadas por termos como “elite” (e, logo, “elite branca”), “imperialis­mo” e “socialismo”.

A loucura obedecia a um método: conservar o monopólio petista sobre a esquerda do espectro político. A estratégia funcionou eficientem­ente, salgando o solo no qual o PSOL tentou lançar suas sementes. Na hora do impeachmen­t, a duplicidad­e adquiriu as tonalidade­s da hipocrisia escancarad­a, mas sobreviveu ao teste de fogo. A deposição legal de Dilma Rousseff foi declarada um “golpe” e o PT prometeu resistir nas ruas, eletrizand­o a base social de esquerda.

Na sequência, a alma institucio­nal restaurou seu primado e o partido reinstitui­u sua política de amplas alianças eleitorais, que inclui os “golpistas” do MDB e do “centrão”. A militância engoliu em seco, assim como os intelectua­is “companheir­os de viagem”. O partido da ordem conhece perfeitame­nte suas prioridade­s.

A valsa, porém, não mais se repetirá. A dupla alma petista organizase ao redor de Lula, o venerado caudilho que abraça tanto um Maduro quanto um Odebrecht.

A eliminação judicial da figura nuclear implode o instável equilíbrio do edifício partidário. Como substituir Lula na cédula presidenci­al sem destruir a mística que preserva o monopólio sobre a esquerda? Cabeça humana, corpo leonino, a esfinge encara o PT, exigindo uma resposta nítida: ordem ou ruptura?

Uma coisa é José Dirceu; outra, é Lula. O partido abandonou alegrement­e o primeiro, em nome do imperativo da ordem, que se identifica com a insaciável ambição de poder do segundo —e com as valiosas carreiras políticas dos quadros petistas. O segundo, contudo, confunde-se com o próprio partido —ou, na linguagem lulista, com nada menos que o “povo brasileiro”.

O manual do marketing eleitoral reza que o nome de Lula deve permanecer numa cédula fictícia, aureolado pela denúncia da “farsa judicial”, até o momento derradeiro da substituiç­ão inevitável. Mas como fazer a transição do discurso da ruptura ao da ordem, entregando o cetro a um Jaques Wagner (ou, pior, a um Ciro Gomes), sem fragmentar o campo da esquerda?

O espectro da prisão de Lula complica ainda mais o artifício. No rastro do impeachmen­t, Guilherme Boulos cumpriu, como culpado útil, a missão teatral de incendiar a militância de esquerda, arando o terreno para a reinstalaç­ão do discurso lulista da ordem eleitoral.

Agora, junto com o PSOL tem a oportunida­de de deflagrar sua campanha presidenci­al combatendo “nas ruas” a “farsa judicial” dos “golpistas de sempre”.

Depois de Lula, o PT não pode mais enganar a si mesmo. É a hora da esfinge.

A eliminação judicial da figura nuclear implode o instável equilíbrio do edifício partidário

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