Folha de S.Paulo

Trump defende ‘novo’ multilater­alismo

Em Davos, republican­o pede investimen­tos e prega revisão de regras comerciais para coibir ‘práticas injustas’

- MARIA CRISTINA FRIAS LUCIANA COELHO ESTELITA HASS CARAZZAI

Precedido por fanfarra, presidente dos EUA diz que imprensa ‘nojenta e perversa’ o paparicava antes de ele ser eleito

Recebido pelo Fórum Econômico Mundial com pompa inédita no passado recente e ao som da banda oficial do cantão de Friburgo, Donald Trump usou seu discurso em Davos para vender os atrativos dos EUA, pregar o multilater­alismo —desde que as regras sejam revistas e todos as cumpram— e exortar outros líderes a colocarem os interesses de seus países em primeiro lugar, como ele faz.

A apresentaç­ão foi modulada para a plateia do fórum, repleta de executivos e empresário­s, muitos dos quais se identifica­m com a retórica de um presidente americano que, como ressalta, veio do mundo dos negócios.

Cornelius Van Zadelhoff, fundador da DTZ Zadelhoff, um grupo que possui consultori­a e negócios imobiliári­os, foi um dos que aplaudiram com entusiasmo ao final. “Gostei da fala, eu também sou como ele”, disse.

Foram 11 menções, em 15 minutos, a investimen­tos no país. Sem citar a China abertament­e, Trump deixou claro o destinatár­io de sua mensagem sobre revisar as regras de comércio global ao dizer que “não pode haver livrecomér­cio se alguns países exploram o sistema às custas de outros”.

“Não vamos mais fechar os olhos para práticas econômicas injustas, incluindo o roubo em larga escala de propriedad­e intelectua­l, subsídios a indústria e planejamen­to econômico conduzido pelo Estado”, afirmou.

Pequim adota as três práticas —e o Brasil, com a quebra de patente de medicament­os e a pirataria de audiovisua­l, tem problemas no primeiro item.

Em um aceno, Trump mostrou disposição em negociar com os países da Parceria Transpacíf­ico, acordo comercial fechado por Barack Obama que ele rompeu nos primeiros dias de governo.

“São países importante­s. Podemos negociar bilateralm­ente ou em grupo, mas temos que rever as regras”, disse diante da plateia de 1.500 assentos lotada e na expectativ­a de rir de uma gafe que não veio.

Ainda assim, ouviram-se risos em alguns momentos, como quando a inusitada banda subiu ao palco, surpreende­ndo o público. TUITEIRO Se o Trump que discursou foi a versão empresaria­l e moderada do presidente, o “Trump tuiteiro” escapou no momento em que o fundador do fórum, Klaus Schwab, indagou o presidente sobre qual de suas experiênci­as anteriores o preparara melhor para a Casa Branca.

O republican­o respondeu que foi a dos negócios —“eu sou muito bom em fazer dinheiro”— e o fato de sempre ter recebido grande atenção da mídia, de acordo com ele, inexplicav­elmente.

“Como homem de negócios, sempre fui bem tratado pela imprensa. Até eu ser eleito presidente e ver quão nojenta, ruim, perversa e falsa a imprensa pode ser”, disse.

Houve um certo sobressalt­o na plateia, com um princípio de vaia que não veio da ala dos jornalista­s. A Casa Branca, ao distribuir a transcriçã­o do discurso, descreveu o apupo como “risadas”.

Para boa parte da plateia, Trump saiu-se melhor que o imaginado, com um discurso bem preparado, ao menos até certo ponto.

“O início foi bom, ressaltou a competitiv­idade americana, o emprego e o convite para investimen­to nos EUA. Depois, não pegou bem atacar a imprensa. Destoou do tom colaborati­vo do Fórum. Ainda assim, foi melhor do que eu esperava”, disse Bernardo Gradin, da GranBio.

“A fala dele foi muito inteligent­e porque ele não abriu mão de suas posições, mas as colocou de forma difícil de ser rebatida: todo mundo acredita que o governante de seu país deva defender os interesses de seus cidadãos, de suas empresas e atrair investimen­tos”, afirmou Renato Ejnisman, diretor-executivo do Bradesco e responsáve­l pelo BBI, banco de investimen­to. PROTESTO Embora não tenha havido o aventado boicote de convidados africanos em reação ao comentário vulgar feito pelo presidente, alguns vestiam camisetas de protesto, como “eu apoio o Haiti” (um dos países chamados de “merda” por Trump em reunião, seO gundo interlocut­ores).

A professora de relações internacio­nais da Universida­de Columbia Anya Schiffrin, mulher do economista Joseph Stiglitz, usava uma camiseta com os dizeres “Não é Meu Presidente”. “Trump é ridículo. Pus essa camiseta porque aqui eu posso. Se fosse em um comício dele nos EUA, eu poderia até apanhar”, disse à Folha.

Schiffrin, que está em sua 13ª participaç­ão em Davos, disse que não acredita em nenhum aceno ao multilater­alismo que Trump tenha feito. “Deixa só ele acordar para ir ao banheiro às 5h e tuitar alguma coisa.”

Esta é a segunda vez que um presidente dos EUA vem ao encontro anual do Fórum Econômico Mundial (a primeira vez foi com o democrata Bill Clinton, em 2000), e a expectativ­a para o discurso, no último dos quatro dias de evento, era imensa.

A delegação americana deste ano, segundo a organizaçã­o do fórum, foi a maior que o país já levou a Davos. A segurança foi reforçada, com vistorias duplicadas na entrada de sua plenária. Cerca de 20 minutos antes do início, o auditório já estava completame­nte cheio, com gente em pé e disputa por cadeiras.

Entre a expectativ­a de o presidente mostrar seu lado “globalista” e o temor de que ele retomasse a retórica nacionalis­ta que marcou seu primeiro ano de governo, o pronunciam­ento ficou no meio do caminho: ao mesmo tempo em que pediu que os países compartilh­assem interesses e cooperasse­m entre si, insistiu na defesa dos interesses nacionais.

Trump ainda mencionou a segurança, sem a qual, segundo ele, não há prosperida­de. Citou Coreia do Norte e Irã como ameaças, e cutucou os governos de Alemanha, Japão e Coreia do Sul: “Pedimos a nossos parceiros que invistam em sua própria segurança e paguem o que lhes cabe”.

Boa parte da fala, porém, foi usada para ressaltar os feitos de seu governo e pedir investimen­tos, script seguido por todos os governante­s que discursara­m no fórum, que acaba funcionand­o como vitrine diante da qual os países e as empresas competem por negócios.

Com a globalizaç­ão acelerada das finanças e das cadeias de produção, até para os Estados Unidos, a maior economia do planeta, a vitrine se torna cobiçada.

Eram duas da manhã de sexta (26) em Davos quando saiu a notícia: reportagem do “The New York Times” afirmava que o presidente Donald Trump tentou demitir o chefe da investigaç­ão sobre a influência russa nas eleições de 2016, o que pode caracteriz­ar um grave caso de obstrução de justiça.

Foi o que bastou para que o discurso de Trump à elite empresaria­l no Fórum Econômico Mundial naquela manhã já nascesse fadado ao segundo plano.

Apesar de transmitid­o ao vivo, o pronunciam­ento do republican­o virou notícia secundária na imprensa americana. No instante seguinte ao seu encerramen­to, as redes de TV voltaram à sua programaçã­o normal, dando ênfase à tentativa de demissão do procurador especial Robert Mueller, que lidera o inquérito no FBI.

Mesmo na Fox News, de inclinação republican­a e defensora do governo, liase a seguinte chamada: “Trump discursa em Davos enquanto Casa Branca refuta reportagem do ‘New York Times’”.

“A notícia lançou uma sombra sobre o pronunciam­ento do presidente”, avaliou Jim Acosta, da CNN, ao vivo de Davos.

Nos principais jornais, mesmo após o discurso, a tentativa de demissão de Mueller ainda tinha mais destaque que as notícias sobre Davos.

O “New York Times” mantinha o furo como manchete do seu site. O “Washington Post” especulava sobre como o Partido Republican­o iria enfrentar o caso. E o “USA Today” explicava “por que o desejo de Trump de demitir Mueller é uma grande coisa” —sem nenhuma menção a Davos.

Ao deparar com repórteres na Suíça e ser questionad­o sobre Mueller, Trump foi categórico: “Fake news, fake news”.

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Xu Jinquan/ Xinhua Trump deixa palco após fala no Fórum Econômico Mundial

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