Trump defende ‘novo’ multilateralismo
Em Davos, republicano pede investimentos e prega revisão de regras comerciais para coibir ‘práticas injustas’
Precedido por fanfarra, presidente dos EUA diz que imprensa ‘nojenta e perversa’ o paparicava antes de ele ser eleito
Recebido pelo Fórum Econômico Mundial com pompa inédita no passado recente e ao som da banda oficial do cantão de Friburgo, Donald Trump usou seu discurso em Davos para vender os atrativos dos EUA, pregar o multilateralismo —desde que as regras sejam revistas e todos as cumpram— e exortar outros líderes a colocarem os interesses de seus países em primeiro lugar, como ele faz.
A apresentação foi modulada para a plateia do fórum, repleta de executivos e empresários, muitos dos quais se identificam com a retórica de um presidente americano que, como ressalta, veio do mundo dos negócios.
Cornelius Van Zadelhoff, fundador da DTZ Zadelhoff, um grupo que possui consultoria e negócios imobiliários, foi um dos que aplaudiram com entusiasmo ao final. “Gostei da fala, eu também sou como ele”, disse.
Foram 11 menções, em 15 minutos, a investimentos no país. Sem citar a China abertamente, Trump deixou claro o destinatário de sua mensagem sobre revisar as regras de comércio global ao dizer que “não pode haver livrecomércio se alguns países exploram o sistema às custas de outros”.
“Não vamos mais fechar os olhos para práticas econômicas injustas, incluindo o roubo em larga escala de propriedade intelectual, subsídios a indústria e planejamento econômico conduzido pelo Estado”, afirmou.
Pequim adota as três práticas —e o Brasil, com a quebra de patente de medicamentos e a pirataria de audiovisual, tem problemas no primeiro item.
Em um aceno, Trump mostrou disposição em negociar com os países da Parceria Transpacífico, acordo comercial fechado por Barack Obama que ele rompeu nos primeiros dias de governo.
“São países importantes. Podemos negociar bilateralmente ou em grupo, mas temos que rever as regras”, disse diante da plateia de 1.500 assentos lotada e na expectativa de rir de uma gafe que não veio.
Ainda assim, ouviram-se risos em alguns momentos, como quando a inusitada banda subiu ao palco, surpreendendo o público. TUITEIRO Se o Trump que discursou foi a versão empresarial e moderada do presidente, o “Trump tuiteiro” escapou no momento em que o fundador do fórum, Klaus Schwab, indagou o presidente sobre qual de suas experiências anteriores o preparara melhor para a Casa Branca.
O republicano respondeu que foi a dos negócios —“eu sou muito bom em fazer dinheiro”— e o fato de sempre ter recebido grande atenção da mídia, de acordo com ele, inexplicavelmente.
“Como homem de negócios, sempre fui bem tratado pela imprensa. Até eu ser eleito presidente e ver quão nojenta, ruim, perversa e falsa a imprensa pode ser”, disse.
Houve um certo sobressalto na plateia, com um princípio de vaia que não veio da ala dos jornalistas. A Casa Branca, ao distribuir a transcrição do discurso, descreveu o apupo como “risadas”.
Para boa parte da plateia, Trump saiu-se melhor que o imaginado, com um discurso bem preparado, ao menos até certo ponto.
“O início foi bom, ressaltou a competitividade americana, o emprego e o convite para investimento nos EUA. Depois, não pegou bem atacar a imprensa. Destoou do tom colaborativo do Fórum. Ainda assim, foi melhor do que eu esperava”, disse Bernardo Gradin, da GranBio.
“A fala dele foi muito inteligente porque ele não abriu mão de suas posições, mas as colocou de forma difícil de ser rebatida: todo mundo acredita que o governante de seu país deva defender os interesses de seus cidadãos, de suas empresas e atrair investimentos”, afirmou Renato Ejnisman, diretor-executivo do Bradesco e responsável pelo BBI, banco de investimento. PROTESTO Embora não tenha havido o aventado boicote de convidados africanos em reação ao comentário vulgar feito pelo presidente, alguns vestiam camisetas de protesto, como “eu apoio o Haiti” (um dos países chamados de “merda” por Trump em reunião, seO gundo interlocutores).
A professora de relações internacionais da Universidade Columbia Anya Schiffrin, mulher do economista Joseph Stiglitz, usava uma camiseta com os dizeres “Não é Meu Presidente”. “Trump é ridículo. Pus essa camiseta porque aqui eu posso. Se fosse em um comício dele nos EUA, eu poderia até apanhar”, disse à Folha.
Schiffrin, que está em sua 13ª participação em Davos, disse que não acredita em nenhum aceno ao multilateralismo que Trump tenha feito. “Deixa só ele acordar para ir ao banheiro às 5h e tuitar alguma coisa.”
Esta é a segunda vez que um presidente dos EUA vem ao encontro anual do Fórum Econômico Mundial (a primeira vez foi com o democrata Bill Clinton, em 2000), e a expectativa para o discurso, no último dos quatro dias de evento, era imensa.
A delegação americana deste ano, segundo a organização do fórum, foi a maior que o país já levou a Davos. A segurança foi reforçada, com vistorias duplicadas na entrada de sua plenária. Cerca de 20 minutos antes do início, o auditório já estava completamente cheio, com gente em pé e disputa por cadeiras.
Entre a expectativa de o presidente mostrar seu lado “globalista” e o temor de que ele retomasse a retórica nacionalista que marcou seu primeiro ano de governo, o pronunciamento ficou no meio do caminho: ao mesmo tempo em que pediu que os países compartilhassem interesses e cooperassem entre si, insistiu na defesa dos interesses nacionais.
Trump ainda mencionou a segurança, sem a qual, segundo ele, não há prosperidade. Citou Coreia do Norte e Irã como ameaças, e cutucou os governos de Alemanha, Japão e Coreia do Sul: “Pedimos a nossos parceiros que invistam em sua própria segurança e paguem o que lhes cabe”.
Boa parte da fala, porém, foi usada para ressaltar os feitos de seu governo e pedir investimentos, script seguido por todos os governantes que discursaram no fórum, que acaba funcionando como vitrine diante da qual os países e as empresas competem por negócios.
Com a globalização acelerada das finanças e das cadeias de produção, até para os Estados Unidos, a maior economia do planeta, a vitrine se torna cobiçada.
Eram duas da manhã de sexta (26) em Davos quando saiu a notícia: reportagem do “The New York Times” afirmava que o presidente Donald Trump tentou demitir o chefe da investigação sobre a influência russa nas eleições de 2016, o que pode caracterizar um grave caso de obstrução de justiça.
Foi o que bastou para que o discurso de Trump à elite empresarial no Fórum Econômico Mundial naquela manhã já nascesse fadado ao segundo plano.
Apesar de transmitido ao vivo, o pronunciamento do republicano virou notícia secundária na imprensa americana. No instante seguinte ao seu encerramento, as redes de TV voltaram à sua programação normal, dando ênfase à tentativa de demissão do procurador especial Robert Mueller, que lidera o inquérito no FBI.
Mesmo na Fox News, de inclinação republicana e defensora do governo, liase a seguinte chamada: “Trump discursa em Davos enquanto Casa Branca refuta reportagem do ‘New York Times’”.
“A notícia lançou uma sombra sobre o pronunciamento do presidente”, avaliou Jim Acosta, da CNN, ao vivo de Davos.
Nos principais jornais, mesmo após o discurso, a tentativa de demissão de Mueller ainda tinha mais destaque que as notícias sobre Davos.
O “New York Times” mantinha o furo como manchete do seu site. O “Washington Post” especulava sobre como o Partido Republicano iria enfrentar o caso. E o “USA Today” explicava “por que o desejo de Trump de demitir Mueller é uma grande coisa” —sem nenhuma menção a Davos.
Ao deparar com repórteres na Suíça e ser questionado sobre Mueller, Trump foi categórico: “Fake news, fake news”.