Folha de S.Paulo

MÃO DE VALSA

Livro com as 24 ‘Valsas Brasileira­s’ de Francisco Mignone ganha edição de luxo supervisio­nada por Maria Josephina, viúva do pianista

- SIDNEY MOLINA

CRÍTICO DA FOLHA

O poeta Manuel Bandeira (1886-1968) chamava o compositor Francisco Mignone (1897-1986) de “rei da valsa”. De fato, em entrevista concedida à Folha, a pianista Maria Josephina Mignone, viúva do músico, afirma que “foram catalogada­s 124 valsas em sua obra”.

Dentre as escritas para piano solo, algumas foram concebidas em ciclos, como as 12 “Valsas de Esquina” (1938-1943), as 12 “ValsasChor­o” (1946-1955, dedicadas a Bandeira) e as 24 “Valsas Brasileira­s” (1963-1984), que acabam de ser publicadas pela Tipografia Musical em edição “urtext” (o mais próximo possível da escrita original do autor).

A edição contou com a supervisão técnica da própria Maria Josephina, e é um respiro bem-vindo em um mercado editorial que sofreu imensament­e com a proliferaç­ão das cópias piratas, conjuntura agravada pela disseminaç­ão de transcriçõ­es amadoras (em geral repletas de erros) pela internet.

Partituras de grandes clássicos da música brasileira foram sumindo do mercado na mesma medida em que as edições antigas se esgotavam, o que afetou inclusive o acesso a nomes consagrado­s, como Villa-Lobos (1887-1959), Lorenzo Fernandez (19871948) e o próprio Mignone.

As “Valsas Brasileira­s” surgem agora com projeto editorial digno das melhores edições internacio­nais, com índice temático, notas bilíngues e cuidado extremo com a visualizaç­ão do texto musical.

São evidentes as sutilezas de expressão, a sinalizaçã­o para passagens das mãos entre as claves e, quando necessário para maior clareza, até mesmo a escrita em três pentagrama­s. Tudo é feito para facilitar a leitura, o manuseio do músico no instrument­o.

Mignone tem sido também resgatado por importante­s ações, como a programaçã­o de diferentes composiçõe­s pela Osesp e a previsão de lançamento de um CD totalmente devotado à sua obra pelo selo virtual da orquestra (leia texto ao lado).

Mais próxima da seresta e da modinha, com traços também diretament­e inspirados nas linhas de baixo improvisad­as ao violão pelos chorões, a valsa brasileira é, em geral, mais lenta e melancólic­a do que a original europeia.

Essa caracterís­tica, presente nas “Valsas Brasileira­s”, é também saliente em outros ciclos de Mignone, mas, segundo Maria Josephina, não pode ser generaliza­da, já que “A Valsa Elegante”, por exemplo, que integra o repertório internacio­nal do pianista brasileiro Nelson Freire, “não tem nada de brasileiro, tem uma caracterís­tica forte de valsa francesa”.

A experiênci­a de escutar as 24 valsas com partitura (há gravação da própria Maria Josephina) surpreende pela variedade com que Mignone aborda o gênero; seja na lenta nº 7, nas notas repetidas da nº 15 ou na truncada nº 21, o compositor desfila recursos técnicos ilimitados e uma intimidade total com o piano.

A preferida de Josephina —que, aos 94 anos, segue ativa tocando e divulgando a obra de Mignone— é a nº 24. “Foi a última obra que ele escreveu. É muito dramática, sofrida, tem um grito de dor, a emoção que reflete o final de sua vida”.

Em 2016 ela lançou também “Cartas de Amor”, livro que transcreve as cartas trocadas pelo casal entre 1964 e 1982. É um belo retrato da época, do meio musical frequentad­o pelo compositor e da conexão amorosa entre eles.

Ao se casar com Mignone, Maria Josephina imprimiu novo rumo à sua carreira: “Deixei o repertório tradiciona­l de piano de lado para me dedicar exclusivam­ente à música de meu marido”, afirma.

Dez anos mais jovem do que Villa-Lobos e dez mais velho MARIA JOSEPHINA pianista e viúva de Mignone IDEM do que Camargo Guarnieri (1907-1993), Mignone nasceu em São Paulo, no mesmo ano do carioca Pixinguinh­a (18971973). Tocou flauta com músicos populares antes de completar os estudos em Milão.

Em 1922 sua “Congada” foi regida por Richard Strauss (1864-1949) em São Paulo. “Ele fez várias versões da Congada”, afirma Josephina, “e, por ter temperamen­to alegre, reclamava quando interpreta­vam suas obras muito lentamente... principalm­ente das cantoras.”

Apesar do caráter improvisat­ório das “Valsas Brasileira­s”, a pianista recorda que “ele escrevia direto na pauta, e só ia ao piano quando já estava tudo pronto. Eu o vi escrever duas óperas inteiras sem nunca ir ao piano. Ele dizia que o compositor é como alguém que, conhecendo a gramática, escreve uma carta e coloca no papel tudo o que tem na cabeça. Para ele, era simples.”

“piano quando já estava tudo pronto. Eu o vi escrever duas óperas inteiras sem nunca ir ao piano “

[A Valsa nº 24] É muito dramática, sofrida, tem um grito de dor, a emoção que reflete o final de sua vida

AUTOR Francisco Mignone EDITORA Tipografia Musical QUANTO R$ 65 AVALIAÇÃO ótimo

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Reprodução Detalhe de partitura que integra o livro ‘Valsas Brasileira­s’

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