Folha de S.Paulo

Joseph Roth faz relato honesto e precioso da União Soviética

- JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA

O século 20 não foi um passeio no parque: duas guerras mundiais, o Holocausto, a tragédia do comunismo —a lista é longa e sinistra. Mas nessa história existe um lugar particular para os “idiotas úteis”: falo dos intelectua­is que, conhecendo a verdade do totalitari­smo, preferiram mentir e defender o indefensáv­el.

Era Adorno quem dizia que não era possível escrever poesia depois de Auschwitz. Parafrasea­ndo a ideia, poderia afirmar que não é possível olhar para o “intelectua­l” da mesma forma depois das traições morais que ele cometeu em nome da sua ideologia.

O escritor Joseph Roth (1894-1939) não pertence a essa lista infame. Entusiasta da chamada Revolução Bolcheviqu­e de 1917, ele visitou a União Soviética em 1926 para contar o que viu. O livro “Viagem na Rússia”, editado pela excelente Âyiné, é o produto —honesto e literariam­ente precioso— dessa experiênci­a.

No início desse conjunto de artigos originalme­nte publicados pelo jornal “Frankfurte­r Zeitung” encontramo­s ainda o Roth “vermelho”, olhando com certa condescend­ência para os exilados russos em Paris. A seus olhos, eles recusam-se a aceitar as leis inexorávei­s do materialis­mo científico, repetindo hábitos que os bolcheviqu­es jogaram no “caixote do lixo da história”.

Essa condescend­ência vai desaparece­ndo quando Roth cruza a fronteira do novo país —ou, como o próprio reconhece, do “novo planeta”.

É um planeta onde existe fome, miséria, imundice —e onde os tetos dos quartos de hotel desabam com impression­ante frequência. É um planeta onde o pensamento se extinguiu e o “homem NEP” —referência aos arrivistas que prosperara­m com um breve período de abertura econômica promovida por Lênin— se mostra tão inescrupul­oso como as piores caricatura­s do capitalist­a ocidental.

Mas existem duas observaçõe­s de Roth que, cem anos depois da “revolução”, merecem reflexão especial.

A primeira lida com a oposição clássica entre a União Soviética e os EUA. Trata-se de uma oposição real, porém ambígua, escreve o autor: os revolucion­ários desprezam a Renascença, o Iluminismo, o romantismo e outros movimentos burgueses; e desprezam a “velha Rússia” reacionári­a de Turguêniev ou Dostoiévsk­i.

Mas os EUA, com o seu culto da novidade e do progresso, estão mais próximos do “novo homem soviético” do que imaginamos. Atraem e repelem porque são, simultanea­mente, o modelo material e o inimigo intelectua­l.

Por último, Roth tem uma mensagem para os “idiotas úteis” que se consideram “revolucion­ários” enquanto deambulam pelo conforto dos cafés de Paris. Não passam de “românticos da revolução”, vendo a União Soviética como uma “utopia intelectua­l” onde as ideias, e o debate de ideias, encontram finalmente o trono que merecem.

Nada mais falso: em 1926, as ideias são suspeitas; os debates são impensávei­s; a autoironia é um vício pequenobur­guês. E os soviéticos clamam, não por metafísica, mas por comida, decência e água encanada.

Como diria mais tarde George Orwell, às vezes o mais difícil é descrever o que está na frente do nosso nariz. Em “Viagem na Rússia”, Roth passou o teste com distinção. AUTOR Joseph Roth TRADUÇÃO Simone Pereira Gonçalves EDITORA Âyiné QUANTO R$ 39 AVALIAÇÃO ótimo

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