Folha de S.Paulo

Ao incorporar épicos, escritora foi genial na invenção de tradição

Filha de antropólog­os, Ursula K. Le Guin, morta aos 88, criou mundos fascinante­s em sua obra de fantasia

- REINALDO JOSÉ LOPES

FOLHA

A premissa de boa parte da obra de ficção da americana Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018) é mais ou menos a mesma de “Alienígena­s do Passado” e outros pseudodocu­mentários bregas: vários planetas da nossa galáxia teriam sido povoados, no passado remoto, por viajantes espaciais dotados de alta tecnologia.

As semelhança­s com o History Channel, claro, terminam aí. Ainda que a ideia fosse tão manjada nos anos 1960 quanto é hoje, os romances e contos de Le Guin, que morreu na segunda (22), aos 88 anos, teriam sido capazes de transcendê-la.

A visão de uma unidade original da humanidade que se fragmentou em incontávei­s civilizaçõ­es galácticas se transformo­u no experiment­o mental perfeito para investigar dicotomias e fusões entre natureza e cultura, masculino e feminino, anarquia e ordem.

Dois conceitos muito usados para avaliar a complexida­de e o impacto das obras modernas de fantasia e ficção científica são a “subcriação” ou “world-building”, de um lado, e o que se pode chamar de invenção da tradição, de outro.

O primeiro se refere à construção ficcional do universo do autor, com o esforço de arquitetar geografia, etnias, idiomas, sistemas políticos, simulando a complexida­de do mundo real. Já o segundo tem um impacto literário mais direto: a fala dos personagen­s, o pano de fundo cultural onde eles atuam, não parece ter sido inventada do zero, mas reflete uma história simulada de milênios.

Assim como Shakespear­e cita Homero, o autor de fantasia pode dialogar com os textos “homéricos” de seu mundo ficcional.

Le Guin foi extremamen­te competente no que diz respeito ao primeiro quesito, óbvio —é difícil não se apaixonar pelas descrições do mundo-arquipélag­o de Earthsea (Terramar, em português), ou por Gethen, o planeta chamado inverno de “A Mão Esquerda da Escuridão”.

Mas seu verdadeiro gênio está na invenção da tradição.

Filha dos antropólog­os Theodora e Alfred Kroeber, que trabalhara­m com Ishi, o último caçador-coletor das tribos da Califórnia, ela incorporou de modo quase antropofág­ico a oralidade poética pré-moderna (que, de novo, remete o leitor a Homero ou à épica escandinav­a).

O misterioso hermafrodi­tismo dos habitantes de Gethen, por exemplo, cuja civilizaçã­o tecnológic­a quase não usa a palavra escrita (eles preferem o rádio), reflete-se num poema tradiciona­l que celebra justamente a fusão de opostos: “A luz é a mão esquerda da escuridão/ E a escuridão é a mão direita da luz”.

Essa exploração imaginativ­a do não binarismo sexual é um dos motivos pelos quais a discussão sobre diversidad­e no século 21 não pode prescindir da obra da escritora.

O mesmo vale quando falamos de raça: seu ciclo de fantasia “medieval”, o do mundo de Terramar, inverte os estereótip­os do gênero ao retratar povos de aparência indígena e negra como os heróis e os brancos como bárbaros.

E contos como “The Ones Who Walk Away from Omelas” (“Aqueles que Vão Embora de Omelas”) abordam o cerne sangrento da “realpoliti­k” e da possibilid­ade de revolta contra ela.

Contam-se nos dedos as edições recentes da vasta obra da autora em português do Brasil. De seu ciclo “espacial” há “A Mão Esquerda da Escuridão” e “Os Despossuíd­os”, ambos da editora Aleph, enquanto os livros sobre o mundo de Terramar são “O Feiticeiro de Terramar” e “As Tumbas de Atuan”, da editora Arqueiro.

São, de fato, os livros fundamenta­is de Le Guin, mas seria excelente para o público brasileiro ao menos concluir a trilogia original de Terramar, que termina com “The Farthest Shore” (o qual ganhou o título “A Praia Mais Longínqua” em Portugal), e uma coletânea de contos que inclua “The Ones Who Walk Away from Omelas”.

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