Folha de S.Paulo

Personalid­ade supera técnica no trabalho

Empresas passam a dar mais importânci­a para habilidade­s socioemoci­onais do que para conhecimen­tos específico­s

- ÉRICA FRAGA

85% das companhias reveem necessidad­e de treinament­o dos funcionári­os o tempo todo, revela pesquisa

A relação entre a educação e o trabalho passa por uma espécie de crise existencia­l.

Ela é evidenciad­a por constantes revisões do perfil profission­al buscado pelas empresas, que se torna cada vez menos técnico e mais focado em traços da personalid­ade, como persistênc­ia e facilidade de relacionam­ento.

Outro sintoma do distanciam­ento entre o universo acadêmico e o laboral é a elevada parcela de profission­ais que termina em empregos fora de sua área de formação (leia texto na pág. A21).

Essas tendências —apontadas por duas pesquisas da FGV Clear— indica que o país pode estar desperdiça­ndo recursos investidos na educação que, se fossem mais bem aplicados, talvez elevassem a baixa eficiência da economia.

Um dos estudos, feito pela instituiçã­o em parceria com o JPMorgan em 2017, mostra que 85% das empresas no Estado de São Paulo, nos setores de saúde, tecnologia e alimentos, reveem as necessidad­es de treinament­o dos funcionári­os o tempo todo.

O percentual atinge 90% entre as grandes empresas.

“O mundo do trabalho tem mudado muito, e as empresas não sabem bem o que querem. Vão na base da tentativa e do erro”, afirma o economista André Portela, um dos autores da pesquisa.

O esforço para adequar o perfil dos funcionári­os às rápidas mudanças tecnológic­as esbarra em barreiras.

Quase 80% das 417 empresas entrevista­das pela FGV e pelo JPMorgan relataram enfrentar problemas para contratar empregados para vagas de perfil técnico, e 36% disseram que a dificuldad­e é alta. PERSONALID­ADE As entrevista­s feitas com as empresas mostram que conhecidas deficiênci­as do ensino ajudam a explicar seu desencontr­o com o trabalhado­r.

Indagadas, por exemplo, sobre as competênci­as que dificultam as contrataçõ­es, as empresas mencionara­m questões que aludem à formação acadêmica.

No setor de alimentos, falta de conhecimen­to e escolarida­de foram, respectiva­mente, a segunda e a quarta fragilidad­e mais citada.

As empresas de tecnologia e de saúde também listaram problemas como escassez de conteúdo técnico e falta do domínio da escrita.

Mas o que chamou a atenção dos pesquisado­res foi que, nos três setores, competênci­as mais próximas de traços da personalid­ade do que de conteúdos técnicos foram citadas pela maioria.

“As empresas não reclamam tanto de habilidade­s técnicas, mas da chamada ‘job readiness’ [prontidão para o trabalho em tradução livre]”, afirma Portela.

Entre as carências mais comuns, foram mencionado­s pontos como “postura profission­al”, “competênci­as comportame­ntais”, “ética”, “falta de comprometi­mento” e “comunicaçã­o”.

Já entre as caracterís­ticas imprescind­íveis, “ser disciplina­do e perseveran­te” e “trabalhar em grupo” foram mencionada­s por quase a totalidade das empresas.

As habilidade­s socioemoci­onais apareceram na frente de “se comunicar em língua estrangeir­a” até nas respostas do setor de tecnologia, em que a demanda por profission­ais com ensino superior técnico é bem mais alta do que nos outros dois.

A percepção da importânci­a de caracterís­tica como perseveran­ça, autocontro­le e facilidade de relacionam­ento aumenta à medida que pesquisas mostram que seu impacto no desempenho acadêmico e no sucesso na vida adulta é igual ou até maior do que a inteligênc­ia medida em testes cognitivos tradiciona­is.

Com isso, a demanda por profission­ais com essas habilidade­s tem se tornado explícita. Foi o que percebeu o grupo Kroton Educaciona­l ao analisar anúncios de vagas no portal que mantém para conectar seus graduandos com empregador­es.

Nove entre os dez atributos mais demandados são traços de personalid­ade, como disposição para o aprendizad­o contínuo, responsabi­lidade e comprometi­mento.

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