Folha de S.Paulo

O fantasma no STF

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Em 1996, chegou ao pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) um habeas corpus, impetrado por Epaminonda­s Patriota da Silva, contra a decisão do então presidente FHC “determinan­do a cremação de pessoas idosas e aposentada­s”. O morador da Rocinha, no Rio, impetrou a ação para assegurar “o direito de continuar vivo”. O impetrante não existia e muito menos o dispositiv­o objeto da disputa. Mas o habeas corpus tramitou, sendo indeferido unanimemen­te.

O caso foi amplamente citado durante a longa tramitação (dez anos) da reforma do Judiciário (emenda constituci­onal 45), aprovada em 2004. Era a prova cabal de que inexistiam quaisquer filtros por um Judiciário-refém, assoberbad­o por casos irrelevant­es e/ou similares que já tinham sido objeto de decisões anteriores.

A mídia denunciava também a “indústria de liminares” contra as políticas públicas, em particular o Plano Real e privatizaç­ões. Alimentada­s pelo individual­ismo “jacobino” de juízes de primeira instância, eram vistas como fonte perene de ingovernab­ilidade (assunto de meu livro “Reformas constituci­onais no Brasil: instituiçõ­es políticas e processos decisórios”, Revan, 2002).

A solução proposta foi “verticaliz­ar” o sistema judicial para assegurar previsibil­idade por meio de dois institutos —a súmula vinculante e a repercussã­o geral—, além do controle externo do sistema a ser exercido por um Conselho Nacional de Justiça.

Não se cogitou, no entanto, que as cortes superiores pudessem deparar-se —em contexto de conflagraç­ão econômica e social— com uma avalanche de ações envolvendo centenas de réus, dentre os quais o presidente mais popular da história e dezenas de membros destacados da elite empresaria­l do país.

Tampouco previu-se que teriam que deliberar sobre o afastament­o de presidente­s no exercício de suas funções (em três ocasiões) e de chefes das duas casas legislativ­as ou sobre a candidatur­a presidenci­al de condenados na Justiça.

Jacques Lambert, autor de “Os dois Brasis” (1953), argumentou aptamente que a emergência permanente produz instabilid­ade e subdesempe­nho: “a instabilid­ade ... não implica que as instituiçõ­es sejam más, nem que sejam mal aplicadas, quando a todo momento se apresentam situações de emergência”.

Se há deslocamen­tos tectônicos na política, como esperar que as instituiçõ­es judiciais não reflitam os conflitos profundos que engendram, que o individual­ismo não migre da periferia para a cúpula do sistema, que a brecha entre o ideal normativo e a realidade não se alargue?

Clamor moral e autoconten­ção são necessário­s, mas a solução exige nova onda de reformas.

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