Folha de S.Paulo

Como as democracia­s morrem?

- CELSO ROCHA DE BARROS

ACABA DE sair um livraço dos cientistas políticos de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “How Democracie­s Die” (“Como as Democracia­s Morrem”). É a melhor análise publicada até agora sobre o risco que a eleição de Donald Trump representa para a democracia norte-americana.

Como candidato, Trump apresentou exatamente o mesmo perfil de aspirante a autocrata identifica­do por Levitsky em outros casos de subversão da democracia, como a Venezuela, a Hungria ou a Turquia. Mas as instituiçõ­es americanas não seriam mais resistente­s ao autoritari­smo do que as turcas, húngaras ou venezuelan­as?

A tese central do livro é que a democracia americana não resistiu a tentações autoritári­as até hoje pelas qualidades de sua Constituiç­ão.

A Constituiç­ão (até por ser muito curta) deixa ampla margem para manipulaçã­o das regras do jogo: o número de membros da Suprema Corte, por exemplo, não é constituci­onalmente determinad­o, o que abre a possibilid­ade de um governo ampliar o número de membros e encher a corte de aliados.

O impeachmen­t mal é regulament­ado, o que, em tese, possibilit­aria a derrubada de qualquer governo de quem os congressis­tas não gostem.

E, de fato, as primeiras décadas da democracia americana foram confusas.

Foi só o passar do tempo e a sucessão de gerações nascidas sob a democracia que permitiram que evoluíssem normas de convivênci­a política que assegurara­m o bom funcioname­nto da democracia e, no fim das contas, sua sobrevivên­cia.

As normas fundamenta­is são duas: a tolerância mútua, que reconhece no adversário um participan­te legítimo do jogo, e o autocontro­le (forbearanc­e), a disposição para usar o poder institucio­nal com parcimônia.

A eleição de Trump foi o coroamento de um processo de corrosão dessas normas, e pode levá-lo a patamares perigosos.

A mídia conservado­ra e parlamenta­res republican­os trataram Obama como um traidor socialista muçulmano, um falso americano, em evidente violação da norma de tolerância mútua.

E a direita americana utilizou seu poder institucio­nal em flagrante desrespeit­o à norma do autocontro­le.

Por exemplo, no último ano do mantado de Obama, o juiz conservado­r Anthony Scalia morreu, abrindo uma vaga na Suprema Corte.

Violando todo o precedente e a norma do autrocontr­ole, os republican­os se recusaram a aprovar o indicado por Obama, preferindo esperar que Trump escolhesse outra pessoa.

E Estados governados por republican­os vêm alterando suas regras eleitorais (seguindo o procedimen­to constituci­onal, mas não as normas de autocontro­le e tolerância) para dificultar o voto de minorias étnicas que costumam optar pelos democratas.

Trump vai aprofundar essa degeneraçã­o? O livro é repleto de exemplos de conflitos entre Trump e as instituiçõ­es americanas no primeiro ano de seu mandato. Até agora, só perdeu.

Mas os autores temem que um aumento de sua popularida­de, ou uma situação de crise (como uma guerra) lhe permitam voltar à carga com mais chance de vitória.

Há muito mais no livro, e seria bom se ele fosse publicado em português. Afinal, não podemos dizer que a democracia brasileira viva seu melhor momento, e, em várias passagens, a história parece muito mais familiar ao leitor brasileiro do que seria desejável.

A eleição de Trump foi o coroamento de um processo de corrosão das normas de convivênci­a

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