Folha de S.Paulo

Espiral autoritári­a

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; ALESSANDRA OROFINO terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

AOS QUE viram em Michel Temer uma esperança reformista, isolada das pressões populares: eu sei, o Brasil precisava mudar radicalmen­te sua Previdênci­a, precisava atualizar suas leis trabalhist­as. E vocês viram nesse sujeito uma brecha: uma possibilid­ade de descolamen­to das decisões executivas da vontade muitas vezes volátil e curto-prazista da população. Era para ele vir, ficar dois anos, fazer as tais reformas, ir embora, e a democracia seguiria seu curso, sobre fundações econômicas mais sólidas, a bomba da Previdênci­a desarmada, o mercado livre para contratar aos montes sem as amarras de uma lei pouco adaptada às realidades do século 21.

Só que deu errado. Michel Temer pode ter chegado onde chegou sem precisar de voto e pode se manter no poder com 6% de popularida­de — mas isso não quer dizer que ele seja impermeáve­l a pressões, pelo contrário. Ele se dá ao luxo de ignorar a população, mas não pode ignorar outras forças: o próprio Legislativ­o, um punhado de partidos moribundos e interesses corporativ­istas sórdidos. E aí a tal da reforma da Previdênci­a deixa de fora, justamente, as Forças Armadas. Os juízes e funcionári­os públicos do Legislativ­o continuam ganhando quase R$ 30 mil mensais de pensão porque têm “direitos adquiridos”. E a reforma trabalhist­a, com suas regras pouco claras e seus regimes de transição alucinados, cria mais inseguranç­a jurídica do que flexibilid­ade.

O pior, no entanto, não é isso: é que na sanha de se manter no poder, sem contar com uma legitimida­de democrátic­a de fato e encalacrad­o até o pescoço em escândalos, Temer vendeu todos os anéis e todos os dedos. Distribuiu emendas, afagou bandidos e agora se dá ao luxo de presentear os aliados fiéis —caso, notoriamen­te, de Roberto Jefferson— com pequenos agrados.

Em tempos normais, a nomeação de Cristiane Brasil seria impossível, porque o custo político de contrariar de forma tão flagrante o bom senso e a ética seria alto demais, sob a forma de uma insatisfaç­ão popular generaliza­da. Mas, para Temer, a insatisfaç­ão popular importa menos que o PTB.

Na ausência de uma regulação política do absurdo, entra em cena a figura do juiz, o novo herói nacional, único agente capaz de incidir sobre um governo isolado da população. E aí a espiral autoritári­a dá mais uma volta: tem razão o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, quando diz que um juiz de primeira instância não deveria poder barrar uma indicação ministeria­l feita pelo presidente da República. E é óbvio que a classe política vai responder —já está respondend­o— com as armas das quais dispõe. A maior delas é a falta de moralidade e ética do próprio Judiciário, que fica evidente na questão dos auxílios-moradia. Assim, mina-se a credibilid­ade da única categoria que, em tempos de blindagem da política, quis parecer responder aos anseios da população.

E quando a população não puder mais exercer um controle democrátic­o do governo e tampouco confiar no Judiciário para fazê-lo? Outros heróis aparecerão. Com vieses mais e mais autoritári­o. Meu palpite é que serão os militares e seus autoprocla­mados representa­ntes. Bolsonaro seria, nesse contexto, a consequênc­ia natural do governo Temer, com a bênção de seu exército de jovens eleitores. Minha geração, que acreditava ter nascido e crescido em relativa democracia, estará decididame­nte optando pelo seu contrário.

Deputado Bolsonaro seria a consequênc­ia natural de Temer, com a bênção de seu exército de jovens eleitores

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