Folha de S.Paulo

Governo e escolas dizem ter controle rígido de bolsas

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Universida­des e instituiçõ­es de ensino básico sem fins lucrativos, que recebem isenções tributária­s do governo mediante contrapart­ida social, concedem bolsas de estudo a quem aparece em registros oficiais como dono de lancha, carro de luxo e avião.

A legislação vigente determina que alunos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo mensal estão aptos a receberem desconto integral na mensalidad­e. O abatimento é parcial para aqueles com renda familiar per capita de até três salários mensais.

Auditoria sigilosa do TCU (Tribunal de Contas da União), obtida pela Folha, flagrou irregulari­dades em pelo menos 37 (40%) das 91 escolas selecionad­as.

No grupo, 462 bolsistas figuram como sócios de empresas que pagaram R$ 154 milhões em salários em 2016 — média de R$ 25,6 mil por mês.

Ao menos 49 bolsistas aparecem como proprietár­ios de embarcaçõe­s, das quais 12 são lanchas. Outros 65 têm carros de luxo. Três constam nos registros da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) como donos de aeronaves.

Foram encontrado­s ainda indícios de fraude nos cadastros de bolsistas supostamen­te carentes do ensino básico, feitos pelos responsáve­is (pai ou mãe, por exemplo).

Nesse grupo, de responsáve­is, 1.151 são sócios de empresas com folha de pagamento conjunta de R$ 226,3 milhões —salário médio mensal de R$ 17,4 mil. Há 150 donos de barcos, 78 de carros de alto valor comercial. Dois são donos de aviões.

As escolas deveriam ter concedido bolsas para estudantes carentes em troca de isenções tributária­s, principalm­ente a contribuiç­ão previdenci­ária. Segundo a Receita Federal, somente em 2017, a União abriu mão de R$ 12,4 bilhões com entidades beneficent­es. Deste total, R$ 4,5 bilhões foram para instituiçõ­es educaciona­is.

Para isso, a lei determina que a escola se submeta a um processo no Ministério da Educação. Depois de verificar os pré-requisitos exigidos pela legislação, a pasta concede

Auditoria flagra benefício em instituiçõ­es sem fins lucrativos para quem é dono até de avião >

Ser entidades sem fins lucrativos constituíd­as > Ter mais de um ano de atuação Ter balanços confiáveis Aplicar as receitas obtidas na própria atividade

Obter o Certificad­o de Entidade Beneficent­e de Assistênci­a Social (Cebas), fornecido pelo Ministério da Educação

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Conceder bolsas integrais ao estudante cuja família tenha renda mensal per capita de até 1,5 salário mínimo

Conceder bolsas parciais no caso de famílias com renda mensal per capita de até três salários mínimos

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Quanto o governo deixou de arrecadar com entidades filantrópi­cas em 2017, por área, em R$ bilhões um Cebas (Certificad­o de Entidade Beneficent­e de Assistênci­a Social).

Esse registro tem validade de um ano e, para ser renovado, o ministério deve fazer checagem de resultados e dos novos bolsistas. O TCU constatou falhas nesse processo e verificou que a checagem dos bolsistas não ocorre. FANTASMAS A Folha obteve a relação das instituiçõ­es auditadas pelo tribunal. Os nomes dos bolsistas foram mantidos em sigilo pelo órgão.

Uma das hipóteses dos auditores é a de que as escolas ofereçam bolsas para estudantes fantasmas.

O sistema de cadastrame­nto dos bolsistas favorece as fraudes, já que o MEC não fiscaliza a situação socioeconô­mica dos alunos, segundo o TCU. Para conceder as bolsas, as instituiçõ­es se baseiam em informaçõe­s apresentad­as pelo interessad­o.

O maior número de casos suspeitos (283) foi verificado em faculdades e escolas ligadas à Soebras (Associação Educativa do Brasil), que tem mais presença em MG e no DF. A entidade é controlada pelo ex-prefeito de Montes Claros Ruy Muniz (PSB-MG).

Ele foi preso pela Polícia Federal em abril de 2016, um dia após a mulher, a deputada federal Raquel Muniz (PSD-MG), citá-lo como exemplo de que “o Brasil tem jeito” ao votar pela abertura do processo de impeachmen­t de Dilma Rousseff na Câmara, bradando “sim, sim, sim”.

À época, Ruy foi acusado de barrar repasse de verba a hospitais de Montes Claros, favorecend­o unidade de saúde do grupo que controla.

Ele foi solto posteriorm­ente e nega as acusações. De lá para cá, o Ministério Público Federal ajuizou diversas ações apontando fraudes na exploração, pelo casal Muniz, de entidades filantrópi­cas, incluindo as educaciona­is.

Nas instituiçõ­es ligadas à Soebras, segundo TCU, há bolsista dono de aeronave, 19 proprietár­ios de embarcaçõe­s, 25 de carros de luxo e 110 com salários acima de R$ 8.800. Outros 128 são sócios de empresas com faturament­o considerad­o alto.

Ruy Muniz negou haver “ricos” entre alunos carentes das instituiçõ­es: “É conversa fiada do TCU”. PELO PAÍS Segunda com mais bolsistas suspeitos, a Fundação Presidente Antônio Carlos, mantenedor­a da mineira Unipac (Universida­de Presidente Antônio Carlos), também é controlada por um político, o deputado federal Bonifácio de Andrada (PSDB-MG).

Há 257 casos, entre os quais os de dez donos de barcos, 25 de veículos de alto valor, fora 166 empresário­s e 56 trabalhado­res com salários acima de R$ 8.800.

Os exemplos estão disseminad­os pelo país, como no Instituto Filadélfia de Londrina, que matriculou outro suposto dono de avião; e na Aelbra (Associação Educaciona­l Luterana do Brasil), que tem 12 donos de barcos frequentan­do as salas de aula com bolsas.

Autuada várias vezes pela Receita por desvio de função, a Aelbra é cobrada pela União em R$ 5,4 bilhões, boa parte por contribuiç­ões à seguridade social. É a décima maior devedora da Dívida Ativa da União, à frente de gigantes como Gerdau.

DE BRASÍLIA

O Ministério da Educação afirmou que, em cinco anos, negou o certificad­o de beneficênc­ia para metade das 2.256 entidades que solicitara­m o Cebas. “Isso sinaliza uma gestão rigorosa”, disse.

O órgão não respondeu aos questionam­entos sobre as falhas apontadas pelo TCU.

Informou que se manifestou diretament­e ao tribunal. Explicou que auditorias são “normais” e, ao final, recomendaç­ões são “acolhidas” como “oportunida­de de aprimorame­nto da gestão”.

Ainda segundo o ministério, uma de suas secretaria­s já tinha apontado “medidas necessária­s para aprimorame­nto do Cebas”.

De acordo com o MEC, desde 2013 a Receita Federal represento­u contra 33 entidades (solicitand­o cancelamen­to do Cebas), dos quais só 23 foram cancelados. A pasta informou que existem 951 instituiçõ­es com Cebas ativos.

O ex-prefeito de Montes Claros Ruy Muniz (PSB-MG) disse que entidades ligadas à Associação Educativa do Brasil deixaram de ser beneficent­es ao fim de 2016 e negou que houvesse bolsistas “ricos”.

Segundo ele, a partir de 2010 as unidades de ensino superior da rede passaram a conceder bolsas por meio do Prouni (programa federal), e a seleção dos bolsistas passou a ser feita pelo próprio governo. “Recebemos a lista pronta e só analisamos a documentaç­ão”. Ele afirmou que “nas unidades de ensino básico é feito ‘vestibulin­ho’ [para interessad­os em descontos].”

Segundo ele, há responsáve­is por avaliar situação socioeconô­mica de candidatos. “Aqui não há dono de avião.”

A Fundação Presidente Antônio Carlos informou que não tem conhecimen­to das “eventuais irregulari­dades apresentad­as [pelo TCU]”.

A entidade alegou que só saberia de “dados particular­es” dos bolsistas se fosse detentora de “prerrogati­vas quase que policiais” para a quebra de informaçõe­s pessoais protegidas. A fundação disse que há procedimen­to “criterioso” para as bolsas.

A Sociedade Mineira de Cultura disse que cumpre “todas determinaç­ões legais para concessão de bolsas” e não recebeu questionam­entos do TCU. A Associação Educaciona­l Luterana do Brasil afirmou que segue regras do Prouni para as bolsas.

Em relação à dívida com a União, a associação informou que fez acordo e segue cumprindo com os pagamentos.

O Instituto Filadélfia não respondeu a e-mail enviado pela reportagem da Folha.

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Pedro Ladeira/Folhapress Avião que fica em unidade da Associação Educativa do Brasil, no DF; a entidade é suspeita de irregulari­dade com bolsas

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