Folha de S.Paulo

Quem julga o juiz?

- COLUNISTAS DA SEMANA: terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, GREGORIO DUVIVIER quinta: José Simão, sexta: Renato Terra, sábado: José Simão, domingo: Ricardo Araújo Pereira

UMA LÍNGUA diz muito sobre a cultura na qual ela está inserida. Os esquimós, dizem, têm 50 palavras para a neve, outros dizem que são 7, outros dizem que isso não passa de um mito linguístic­o, o que muito provavelme­nte é verdade, mas é muito chato quando alguém estraga seu exemplo com preciosism­o linguístic­o.

Tenho a impressão de que nosso maior tesouro vocabular se concentra no ramo da corrupção. Tramoia, mamata, mutreta, maracutaia, trambique, propina, esquema, falcatrua, negociata, muamba, faz-me rir. A corrupção está pra gente como a neve pro esquimó.

O léxico, claro, não é estanque. Aumenta à medida em que surgem novas e inusitadas maneiras de burlar a lei. Mensalão, Petrolão, Trensalão, Pixuleco, Propinodut­o, Grande-Acordo-Nacional-Com-Supremo-Com-Tudo. Sérgio Côrtes, secretário preso de Sérgio Cabral, teclou, da cadeia, para um empresário-parceiro: “Podemos passar um tempo na cadeia, mas nossas putarias têm que continuar”. “Nossas-putarias” se destaca pela franqueza. Podia entrar na bandeira. Ordem e Progresso Desde que Continuem Nossas Putarias.

Essa semana surgiu uma expressão preciosa. Revelou-se, só agora, que o juiz Sergio Moro recebe, há anos, o famoso auxílio-moradia, mesmo já tendo moradia e já tendo um salário que beira os R$ 30 mil, fora os benefícios (em dezembro passa de R$ 100 mil). Questionad­o, o juiz chamou o auxíliomor­adia de “compensaçã­o” porque seu salário não pode ser reajustado por causa do teto constituci­onal.

A palavra “compensaçã­o” pra designar uma tramoia me fascinou porque mostra bem como pensa aquele que pratica uma contravenç­ão: ele está sempre apenas resgatando o que lhe é de direito. Sonego, mas pra compensar tanto imposto. Roubo, mas pra compensar o que me roubam. O tríplex, o helicópter­o de cocaína, o apartament­o cheio de caixas de dinheiro, a mala, o dinheiro na cueca, os 500 anos de vantagem indevida: tudo compensaçã­o.

Moro, claro, não é o único. Os três juízes do TRF-4 também recebem auxílio-moradia —embora também possuam moradia, além do salário vultoso. Esse ano a gente deve gastar R$ 800 milhões só com o tal auxíliomor­adia. Um dinheiro precioso num país em que tanta gente não tem onde morar. Como é que esse povo dorme à noite? Pensando: “Não é corrupção, é compensaçã­o”.

Por que então pagamos o auxílio, já que não é pra moradia? Moro assumiu, Fux também: pra que juízes ganhem mais do que é permitido por lei. Isso foi dito por agentes da lei. Até quando essas putarias vão continuar?

Tríplex, apartament­o cheio de dinheiro, dinheiro na cueca, 500 anos de vantagem indevida: tudo compensaçã­o

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Catarina Bessell

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