Folha de S.Paulo

Exemplo de desigualda­de

-

Pouco importa se o magistrado exerce ou não sua atividade no mesmo município onde vivia antes de prestar concurso ou onde vive sua família. Se não tem moradia própria ou se é proprietár­io de um, de dez ou de 60 imóveis. Se a esposa e o marido gozam ou não das mesmas prerrogati­vas.

São questões irrelevant­es frente ao principal: nada justifica que qualquer servidor, com altos salários, estabilida­de de emprego e aposentado­ria integral, receba R$ 4.378 de auxílio-moradia como um acréscimo à sua remuneraçã­o mensal.

Essa e outras inúmeras verbas indenizató­rias (sobre as quais não incidem impostos nem encargos previdenci­ários) são meros subterfúgi­os formais e semânticos para burlar o teto salarial dos servidores públicos, fixado em R$ 33,8 mil. São, portanto, inconstitu­cionais e precisam ser abolidas integralme­nte.

O teto, fixado no artigo 37, inciso 11, da Constituiç­ão, é suficiente para uma família viver e morar bem, obviamente sem a pornográfi­ca ostentação da elite econômica brasileira. Permite alugar ou adquirir, com folga, uma moradia digna, mesmo nos municípios onde os imóveis são mais caros.

Apenas a escandalos­a desigualda­de da sociedade brasileira, uma das maiores do mundo, explica a existência desse subsídio habitacion­al, permanente e vitalício, para os membros de uma categoria de renda elevada. Benefício que custará ao contribuin­te, neste ano, nada menos que R$ 831 milhões.

No Brasil, as necessidad­es habitacion­ais estão concentrad­as na baixa renda. Como mostrou o PlanHab (Plano Nacional de Habitação), cerca de 7,9 milhões de famílias coabitam a mesma casa de parentes ou vivem em moradias imprestáve­is, enquanto que 3,2 milhões moram em assentamen­tos precários e 9,8 milhões têm deficiênci­a de infraestru­tura urbana.

O PlanHab propôs orientar o subsídio habitacion­al para esses segmentos, que constituem a faixa um do Programa Minha Casa Minha Vida. Entre 2009 e 2014, foram contratada­s uma média de 268 mil unidades por ano, mas, desde 2015, o ajuste fiscal tem reduzido drasticame­nte esse subsídio.

Em 2017, cerca de R$ 4 bilhões dos recursos previstos para a faixa 1 (56%) foram contingenc­iados e quase nada foi contratado para os mais necessitad­os. Os R$ 831 milhões anuais do auxílio-moradia não resolveria­m a escassez de recursos para habitação, mas contribuir­iam para um novo equacionam­ento do problema.

Combater a desigualda­de de renda e os privilégio­s presentes no Brasil é uma tese que quase todos defendem na teoria, mas que poucos colocam em prática. Extinguir o auxílio-moradia é uma oportunida­de para dar um pequeno passo nesse sentido, que exige iniciativa­s muito mais expressiva­s, como uma efetiva reforma tributária.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil