Folha de S.Paulo

Precisa demonstrar qual é o caso.

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Folha - Com a experiênci­a de presidir o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e comandar eleições, qual é a possibilid­ade, na sua opinião, de Lula chegar ao dia das eleições, 7 de outubro, como candidato?

Gilmar Mendes - A inelegibil­idade depois de uma condenação em segundo grau talvez seja uma das poucas certezas que a gente tenha em relação à Lei da ficha Limpa. Mas já não houve candidatos que concorrera­m mesmo depois de condenados?

A não ser que se consiga a suspensão da condenação no âmbito penal, a pessoa está fora do processo. A condenação é quase que uma inelegibil­idade aritmética. Não há a possibilid­ade de a tramitação do caso se prolongar no TSE a ponto de ele concorrer até o fim?

Acho muito difícil, nesses casos de grande visibilida­de [que o processo demore], porque isso envolve a autoridade da Justiça Eleitoral. Em geral a nossa orientação tem sido a de acelerar esses processos, para evitar uma chicana. E qual é a possibilid­ade de o STF (Supremo Tribunal Federal) garantir Lula na eleição, por meio de uma liminar?

O Supremo já declarou várias vezes a constituci­onalidade da Lei da Ficha Limpa. Não me parece que haja essa possibilid­ade. Não estou falando do caso concreto, mas sim das práticas que nós temos tido. A presidente do STF, Cármen Lúcia, disse que usar o caso de Lula para rediscutir a possibilid­ade de prisão após condenação em segunda instância seria apequenar o tribunal.

A questão vai chegar de um jeito ou de outro no Supremo. E Lula tem todo o direito, constituci­onal, de recorrer.

Eu estou dizendo isso. Não sei quantos ministros nomeados por ele falariam o mesmo. Mas é legítimo direito do presidente buscar a proteção dos seus direitos. Deixar de apreciar [o caso de Lula] seria discrimina­tório. Me parece óbvio, cristalino. A questão será discutida. O que pode ser decidido? Resultado, só depois do jogo. O STF, e o senhor especialme­nte, têm recebido inúmeras críticas. Uma delas é a de que o tribunal agrava a crise no país ao permitir a inseguranç­a jurídica.

Vivemos momentos peculiares, obviamente. Assumimos uma centralida­de que não deveríamos ter. Passou-se a levar para o STF questões que não deveriam passar por lá. Mas o tribunal atuou ao longo dos anos de forma adequada. Deu contribuiç­ões importante­s na área fiscal. Tomamos decisões importante­s de orientação e moderação, como a súmula das algemas. Mas houve muitas mudanças ao longo dos anos [na composição do STF].

Eu tinha um temor de que, naquele quadro político conturbado [dos governos do PT], houvesse um tipo de bolivarian­ização [referindo-se ao regime da Venezuela] do tribunal, de se indicar agentes políticos para novas vagas.

Hoje a gente vive uma bolivarian­ização de forma invertida. Não é mais um agente político que manda o tribunal decidir desta ou daquela maneira. Alguns ministros, em alguns casos, decidem de acordo com o que as ruas podem imaginar que é justo.

Nossa função é decidir de forma contramajo­ritária. E não bater palma para maluco dançar. Se perguntarm­os o que as pessoas querem em relação aos que praticaram crimes, é pena de morte. Linchament­o. Até se compreende esse sentimento. Mas o tribu- nal não pode ecoar esse tipo de coisa. Tem ecoado muitas vezes. E se tornou caixa de ressonânci­a do Ministério Público. Em certos casos, passou a ser carimbador [de decisões do MPF], e de forma vexatória. Se os ministros não são candidatos a nada e não podem ser removidos de seus cargos, por que imaginar que cedem à opinião pública e não que votam por suas convicções?

Estamos vivendo uma fase populista da sociedade e as pessoas têm medo de serem criticadas, atacadas, ou de sofrerem, em sua vida pessoal, um escrutínio mais forte por parte da mídia, o que é comum quando se nada contra a corrente.

Acabou-se criando, em muitos casos, restrições ao habeas corpus, o que viola a tradição do STF, ou a conversão do tribunal em muitos casos em mero órgão de chancela da Procurador­ia. Outra crítica ao STF é a invasão da competênci­a de outros poderes. A presidente Cármen Lúcia impediu o presidente Michel Temer de nomear a ministra do Trabalho, Cristiane Brasil. E o senhor impediu a então presidente Dilma Rousseff de nomear Lula.

No caso do Lula, havia indicações de que ele estava sendo nomeado para receber foro e fugir do processo de Curitiba. Era um contexto de fraude processual.

O outro caso é diferente. Será que nenhum juiz tem ação trabalhist­a? [Cristiane Brasil foi impedida de tomar posse por responder a processos trabalhist­as]. Chega a ser engraçado. O moralismo é o túmulo da moral.

Agora, por que isso está ocorrendo? Pela debilidade do governo. Se fosse um governo normal, forte, que não tivesse passado por tantos percalços, quem ousaria dar essa liminar? Ela não duraria um minuto. Porque é um caso de infantilis­mo judicial.

A questão do indulto [Cármen Lúcia impediu, por meio de liminar, que Temer desse indulto a presos brasileiro­s] é outro exemplo. Se louvam em argumentos inconsiste­ntes e mistificad­ores que a imprensa ajuda a espalhar. Por que inconsiste­ntes?

Disseram que o indulto beneficiar­ia presos na Operação Lava Jato. E não se mostra um réu da Lava Jato que seria beneficiad­o. Não obstante, a procurador­a-geral [Raquel Dodge] pede [liminar] e a presidente do Supremo confirma, com esse argumento. Veja!

É preciso respeitar um pouco os fatos. Pode ser que nós tenhamos milhões de botocudos ainda. Mas respeitem a inteligênc­ia da gente.

Há também uma certa irresponsa­bilidade alimentada pela mídia. Se alguém bate palma para maluco dançar é uma boa parte da mídia. Mas qual seria o interesse da mídia nesse assunto?

Ela tem lado. “Ah, o governo está fazendo um mal.” E é irresponsá­vel. Porque [a suspensão do indulto] agrava o caos penitenciá­rio [deixando presas] pessoas que estão esperando porque já cumpriram parte da pena. Isso [o indulto] tem funcionado ao longo dos anos, até com a perspectiv­a de uma certa restrição ao modelo punitivo.

Então esse é o ambiente que se criou, em que determinad­os interlocut­ores podem falar o que quiser. Há um escrutínio frágil do que eles dizem. Por isso se diz muita besteira. O senhor recentemen­te foi xingado em Lisboa e em um avião. Como se sente? Na hora em que é xingado, não tem vontade de reagir?

Eu fico absolutame­nte calmo. Sei do meu papel, que é histórico, de impedir esse quadro de abusos.

Sei que a responsabi­lidade é menos dessas pessoas e mais de certa mídia. A mídia foi responsáve­l por esse processo de fascismo que se desenvolve­u.

E eu já avisei a certos diretores de redação que, se algo grave acontecer comigo, sei quem são os responsáve­is. Há críticos que dizem que o senhor invoca o princípio da liberdade para, na verdade, julgar pessoas próximas quando deveria se dar por impedido. O do empresário Jacob Barata. O senhor foi padrinho de casamento da filha dele.

É uma pessoa que vi uma vez. Fui ao casamento porque minha mulher [Guiomar] era tia do noivo. Um casamento que depois se desfez.

Se formos inventar impediment­os, teremos manipulaçã­o de resultados no STF.

Ou temos essa dimensão ou vira essa coisa terrestre, pedestre, rastaquera. É esse hoje o nível do debate no Brasil. Há críticas também ao fato de o senhor mudar de posição em relação à prisão depois de condenação em segunda instância. Segundo elas, o senhor estaria fazendo isso para beneficiar seus amigos.

Mas que amigo? Eu não tenho amigo que esteja correndo risco de prisão. Isso virou o Brasil, essa coisa rastaquera.

Votei a favor [da prisão depois de segunda instância] entendendo que ela era permitida. Mas o que passou a ocorrer? Virou regra, como se tivesse sido um axioma. Se tornou imperativa, nesse ambiente de caça às bruxas.

É esse debate, nesse contexto geral, que eu recoloquei. Vamos ter que fazer uma leitura política disso.

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