Folha de S.Paulo

CRÍTICA Memória da guerra ecoa no presente libanês

Após escapar da censura e se tornar a terceira maior bilheteria do Líbano em 2017, filme ganhou indicação ao Oscar

- LÚCIA MONTEIRO

FOLHA

Quarto longa de Ziad Doueiri, “O Insulto” é um filmeevent­o. E não apenas por se tratar do primeiro concorrent­e libanês ao Oscar de melhor filme estrangeir­o.

O governo foi pressionad­o para barrar a indicação de “O Insulto” ao prêmio da Academia. Houve tentativas de censura no Líbano e em outros países árabes. Mesmo assim, o longa estreou no país, revelando-se a terceira maior bilheteria libanesa de 2017 —e fonte de inesgotáve­l polêmica.

Doueiri, que é muçulmano, assina o roteiro em parceria com sua ex-mulher, Joelle Touma, de origem cristã. No longa, uma querela ordinária em torno da reparação de uma calha é levada ao tribunal e se torna o estopim de um conflito político envolvendo libaneses do partido cristão e refugiados palestinos apoiados pela esquerda.

Incomodado pela presença palestina na vizinhança, o mecânico Tony Hanna (Adel Karam) destrói o conserto em sua casa feito sob as ordens de Yasser Abdallah Salameh (Kamel el Basha), contratado pelo município para gerenciar obras de urbanizaçã­o.

Yasser chama Tony de algo como “babaca”, e este exige desculpas. Quando o mestre de obras se convence a ir à oficina do mecânico ofendido, é recebido ao som de um discurso xenófobo da extrema direita libanesa.

O mecânico dirige-se ao palestino com a terrível frase: “Gostaria que Ariel Sharon tivesse exterminad­o todos vocês”. Yasser perde a cabeça, e quebra duas costelas de seu interlocut­or. O incidente gera uma série de repercussõ­es melodramát­icas, jurídicas e políticas.

Daí em diante, “O Insulto” se torna um legítimo “filme de tribunal”. Com atuações convincent­es, os advogados de um e outro lados dão corpo a discursos que inflamam a audiência e a população.

Não há como não pensar nas cenas de julgamento de “Fúria” (1936), de Fritz Lang, em que também se tratava de provocar e manipular a animosidad­e das massas. Há uma referência explícita ao filme do cineasta alemão quando um projetor é levado à corte para exibir imagens do ataque à cidade de Damour em 1976, onde Tony vivia, perpetrado por militantes de esquerda e palestinos.

Em “O Insulto”, o lugar da vítima e o do agressor estão sob permanente disputa. O refugiado palestino e o libanês cristão revezam-se em ambos papéis, o que não implica em uma suposta neutralida­de do filme, mas garante pontos de vista cambiantes.

No embate, importa menos a decisão da juíza do que o diagnóstic­o das tensões em jogo. Nesse sentido, se o filme defende uma posição, é a da necessidad­e do trabalho de memória. É preciso reabrir as feridas provocadas pela Guerra Civil (1975-1990) para que elas possam cicatrizar de fato. Doueiri sugere que não há como “virar a página” sem passar por esse processo doloroso. (L’INSULTE) DIREÇÃO Ziad Doueiri ELENCO Adel Karam, Kamel El Basha, Camille Salameh PRODUÇÃO Líbano/Bélgica/Chipre/ França/EUA, 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (8) AVALIAÇÃO ótimo

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Fotos Divulgação Camille Salameh e Adel Karam em cena do filme de Ziad Doueiri, que causou polêmica em vários países árabes

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