Folha de S.Paulo

Filho de lavradora passa em 1º lugar em mestrado de arqueologi­a em Portugal

Nascido dentro do parque da Serra da Capivara, no Piauí, Iderlan de Souza, 31, estuda as pinturas rupestres e a megafauna da região

- MARINA ESTARQUE

DE SÃO PAULO

Iderlan não sabe bem por que ri quando conta as agruras de sua infância na caatinga no Piauí. Filho de uma lavradora, dividiu a vida —e todos os alimentos— com nove irmãos. “No café da manhã, era um pão para dois. Um cacho de banana acabava rapidinho”, diz, e gargalha.

Por que o riso, Iderlan? “Não sei. Acho que tenho vergonha ou faço para amenizar as dificuldad­es. Nunca tinha reparado”, conta. E ri mais um pouco. Quem ouve a história de Iderlan de Souza, 31, pode achar que ele se resignava diante das limitações do meio onde nasceu —um povoado de poucas famílias onde a seca e a fome eram comuns. Mas é o contrário.

Iderlan foi o primeiro da família a entrar na faculdade e se formou em arqueologi­a em 2016. Em seguida, passou em primeiro lugar no mestrado da Universida­de de Trás-osMontes e Alto Douro (UTAD), em Portugal. O curso, de arqueologi­a pré-histórica e arte rupestre, é formado por um consórcio de seis universida­des europeias e faz parte do programa Erasmus Mundus.

Apesar de a mãe ver a especialid­ade com certa desconfian­ça —ela preferia direito ou medicina— a arqueologi­a estava bem próxima. Iderlan nasceu no Parque Nacional da Serra da Capivara, que tem a maior concentraç­ão de sítios arqueológi­cos das Américas.

Seu povoado, que vivia da agricultur­a de subsistênc­ia, teve que ser removido nos anos 1990 quando o parque se tornou área de preservaçã­o permanente. A família se mudou para um município próximo, São Raimundo Nonato (a 519 km de Teresina).

A mãe e os irmãos mais velhos trabalhava­m na roça. Por ser o caçula, Iderlan foi poupado. “De certa forma eu tive mais oportunida­de, só fui para a roça com 16 anos [risos]”, diz. Mesmo assim, o trabalho atrapalhou os estudos. “Tive alguns atrasos para terminar o ensino médio”, explica. Com o tempo, os irmãos cresceram e migraram para outras cidades. As irmãs ficaram e seguraram as pontas.

Sua mãe mal frequentou a escola. “Ela diz que não sabe ler, mas me ensinou o alfabeto. Quando ela se esforça, consegue descobrir as palavras.” TÃO PERTO, TÃO LONGE Apesar de ter nascido no parque, Iderlan nunca tinha visto as pinturas rupestres, que ficavam longe do seu povoado. Quando criança, a escola pública organizava visitas, mas ele nunca pôde ir, por falta de dinheiro. “A gente sabia que não podia participar de muita coisa no colégio, porque ia ter gasto, então nem pedia”, lembra e, de novo, ri do próprio relato.

Foi só aos 18 anos, quando entrou na Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que Iderlan visitou o primeiro sítio arqueológi­co. A fundação foi criada em 1986 por pesquisado­res, entre eles a arqueóloga Niède Guidon, para preservar o parque.

Primeiro, Iderlan participou de um projeto social da fundação e fez um curso de guia turístico. Depois, foi trabalhar na biblioteca, ajudando a catalogar o acervo. Em 2007, virou técnico no laboratóri­o de paleontolo­gia.

“Eu limpava os fósseis, fazia restauraçã­o e numeração. Depois o pesquisado­r fazia a classifica­ção. Foi assim que despertou a minha paixão pelos fósseis da megafauna”, explica ele, que ficou nove anos na fundação e passou por vários laboratóri­os. Ao mesmo tempo, entrou na faculdade e se formou em arqueologi­a pela Universida­de Federal do Vale do São Francisco.

A monografia de Iderlan, sobre a relação entre o homem e a megafauna, foi considerad­a inovadora. Ele defende que algumas pinturas rupestres realizadas por grupos pré-históricos na Serra da Capivara são representa­ções de espécies da megafauna. “No Brasil, os pesquisado­res não costumam interpreta­r as pinturas rupestres”, diz ele.

Para continuar a sua pesquisa, Iderlan precisava sair da região e escolheu o curso da UTAD, em Portugal, por ser muito reconhecid­o na área.

Segundo a coordenado­ra do mestrado, Mila Simões de Abreu, a pesquisa de Iderlan é “muito interessan­te”.

Ela explica que a Serra da Capivara tem uma caracterís­tica curiosa: a região reúne muitos fósseis da megafauna com datações recentes, contemporâ­neas à presença humana, e que a representa­ção de espécies da megafauna nas pinturas rupestres não é comum, o que torna mais relevante o trabalho de Iderlan.

A arqueóloga Niède Guidon, presidente da fundação, comemorou a aprovação no mestrado. “Acho que o Iderlan merece! Ele realmente é um bom pesquisado­r. Sempre foi um excelente funcionári­o, aprendia rápido e cumpria suas funções com esmero”, diz.

Abreu ressalta ainda a importânci­a de formar pesquisado­res na região. “Os importantí­ssimos vestígios paleontoló­gicos da Serra da Capivara têm sido estudados por estrangeir­os, mas é hora de os brasileiro­s estudarem.” Guidon concorda e defende que os jovens do Piauí continuem o trabalho iniciado pela fundação. “Deste modo a proteção desse patrimônio mundial ficará garantida”. VAQUINHA Desde que soube do resultado, Iderlan tem juntado dinheiro para a viagem. Ele trabalha como guia no parque e ganha em média R$ 2.000 por mês. Pretendia viajar em 2017, mas não conseguiu pagar o curso a tempo e perdeu o ano.

Abreu, ciente da situação, negociou e conseguiu uma extensão de prazo para outubro de 2018. “Espero que possa ajudar o Iderlan a realizar o seu sonho”, disse ela.

Outras pessoas também se prontifica­ram a ajudar. Empresas de turismo da região doaram passagens, e colegas criaram uma vaquinha on-line para arrecadar R$ 36 mil.

“Tenho que pagar o curso, fora os gastos lá. A vaquinha está indo bem, já arrecadou R$ 5.800, não esperava”, afirma, entre risos. Sua mulher e o filho, de sete anos, também dão força para a iniciativa.

Mas a mãe de Iderlan ainda tem dúvidas sobre a profissão do filho. “Ela fica muito orgulhosa, mas não entende bem a importânci­a da minha área. Acha que só a graduação já está bom, não precisa de mestrado”, conta ele, rindo novamente —dessa vez não por vergonha ou para minimizar o sofrimento. “Isso aí só acho engraçado mesmo.”

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Acima ,I derlan de Souza, 31, no parque, e algumas das pinturas rupestres que ele estudou ems ua monografia

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