Folha de S.Paulo

QUADRADO DA CIZÂNIA

Artista argentina diz que diretor de ‘The Square’ foi autoritári­o ao usar seu nome em obra de ficção

- GUSTAVO FIORATTI

No início do filme “The Square”, o espectador é colocado diante de uma obra fictícia da “artista e socióloga argentina” Lola Arias. A obra é um quadrado desenhado em um piso: quem adentra seus limites, diz texto que integra o autodenomi­nado “santuário”, deve compartilh­ar “direitos e obrigações iguais”.

A Lola Arias real, também argentina e artista, mas não socióloga, sentiu-se desgostosa. Seu nome e sobrenome são citados cinco vezes no decorrer do filme do sueco Ruben Östlund —premiado com a Palma de Ouro em Cannes no ano passado, o longa, que está em cartaz, concorre ao Oscar de filme estrangeir­o.

A artista incomodou-se com o uso de seu nome sem que lhe pedissem autorizaçã­o.

No filme, o nome de Arias é inserido no retrato satírico de um cenário artístico esvaziado de potência. O protagonis­ta da trama, Christian (Claes Bang), é um diretor de museu de arte contemporâ­nea que tem preferênci­a por obras impregnada­s por ideais de bondade e utopia.

Arias se incomodou “especialme­nte” porque ela e o diretor estiveram em contato durante a criação do filme.

“Tudo havia começado como uma colaboraçã­o artística” diz ela, que chegou a rodar cenas para o longa. “O que houve comigo foi uma demonstraç­ão de autoritari­smo, sexismo e colonialis­mo. Ele [Östlund] tomou uma decisão sem me consultar, usou meu nome sem pedir.”

As cenas que Arias gravou para o filme foram cortadas. Segundo ela, seu nome na trama seria Natalia. À Folha Östlund diz que não: “Sempre usamos Lola Arias. Na cenas em que filmamos, ela inclusive está dizendo seu nome. É difícil entender como ela não estaria sabendo disso”.

Östlund diz ainda que, com frequência, batiza personagen­s com o nome dos atores que os encarnam. Ao ser questionad­a sobre se pretende levar o caso à Justiça, Arias diz que não fala sobre o assunto.

Para ela, o conflito se deu em uma relação que pressupunh­a colaboraçã­o mútua e a possibilid­ade de, como artista inserida na obra, conseguir expressar sua própria voz.

“Sei o que é uma colaboraçã­o artística, pois trabalho o tempo todo com outras pessoas. Sei qual responsabi­lidade que alguém deve ter quando usa a história e o nome de um outro. Para trabalhar com o outro é preciso escutá-lo, levá-lo em consideraç­ão.” CAMPO MINADO Quando diz que trabalha “com outras pessoas”, ela se refere a um modelo que desenvolve há mais de dez anos.

Em “Chácara Paraíso”, feita em São Paulo em 2007 com Stefan Kaegi, por exemplo, recrutou policiais. Dentro de uma instalação cheia de corredores e salas, os não atores demonstrav­am habilidade­s e contavam histórias.

Em março (entre os dias 1º e 4), a Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo traz à cidade outro trabalho seu. “Campo Minado” coloca veteranos da Guerra das Malvinas (1982) sobre o palco.

Foi um trabalho criado durante dois anos e que passou pelo obstáculo de conciliar versões e humores de adversário ingleses e argentinos. Arias conta que foi difícil convencer participan­tes a expor suas lembranças ao público e a conviver com ex-inimigos.

Os bastidores do encontro estão no filme “Teatro de Guerra”, que ela exibe no Festival de Berlim, neste mês.

Está implícita em seu trabalho a ideia de um teatro sempre em construção. “Como nos projetos documentai­s que fiz nos últimos anos, são pessoas sobre o palco, suas percepções vão se modificand­o, às vezes é uma frase que muda. Com a repetição, o ator encontra ideias e emoções e aperfeiçoa a formulação. Isso é o mais bonito do projeto.”

Se considerar­mos que a menção a seu nome em “The Square” não é arbitrária, talvez o resultado seja o de duas visões artísticas em conflito, não só pela rigidez do ci- nema em relação ao teatro mas também pelo posicionam­ento crítico com que o filme se refere ao contexto criativo de Arias.

O filme diz que a obra de Lola, a personagem, tem influência das ideias do ensaísta e curador francês Nicolas Bourriaud. É uma relação que existe na obra real de Arias.

Bourriaud expressa, em síntese, que a arte contemporâ­nea “já não tem como meta formar realidades imaginária­s e utópicas”, mas sim “construir modelos de ação dentro da realidade já existente”.

Em um debate sobre “The Square” realizado no MIS-SP, na quarta (7), o editor Tiago Ferro disse que a potência do longa se dá ao “mostrar-se um beco sem saída civilizató­rio de uma sociedade avançada e rica”, e que, “neste ponto, a arte serve para mostrar uma inoperânci­a ou uma incapacida­de de lidar com a realidade”.

Dentro do santuário proposto pelo quadrado tudo é lindo, mas o protagonis­ta do filme vive o dilema de não encontrar, fora dele, qualquer correspond­ência com a proposta. Ele confronta sua vida de privilégio­s com a de pessoas famintas e excluídas do circuito em que se insere.

Conhecido por obras que frequentem­ente utilizam o nome de pessoas reais em ficções, o escritor Ricardo Lísias estava na plateia do MIS.

Para ele, a menção ao nome de Arias traz uma aproximaçã­o da ficção com a realidade, o que tornaria o filme “mais eficiente” em sua crítica à rede de instituiçõ­es (museus e galerias) que “engolfa” a personagem. Para ele, o alvo são as instituiçõ­es.

Lísias foi processado por Eduardo Cunha por ter escrito o “Diário da Cadeia”, livro sobre o cenário político assinado por pseudônimo cujo nome coincide com o do ex-presidente da Câmara. Cunha perdeu em todas as instâncias.

O escritor reconhece a importânci­a de Arias e acha que, se ela processar Östlund, fará “papel ridículo”. A equação ainda não fecha. Na plateia do MIS, uma espectador­a tratou a obra “The Square” como fosse, de fato, de Lola Arias. A artista, contudo, nunca criou nada semelhante. Fora da ficção, a obra foi realizada pelo próprio Östlund e pelo produtor sueco Kalle Boman, em 2015.

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Obra fictícia exibida em cena do filme ‘The Square’, de Ruben Östlund Cena da peça de Lola Arias ‘Campo Minado’, que estará na MIT-SP, em março A artista argentina Lola Arias, cujo nome assina uma obra fictícia no filme ‘The Square’

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