Folha de S.Paulo

Deveres na saúde

Encerrando uma controvérs­ia de duas décadas, Supremo decide que planos privados precisam compensar o SUS por serviços a seus segurados

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São poucas as pautas que chegam ao plenário do Supremo Tribunal Federal capazes de produzir votação unânime, nestes tempos de um colegiado que se esfarinha em individual­ismo militante.

Uma dessas raridades emergiu na quarta, quando nove ministros presentes deram ganho de causa ao Sistema Único de Saúde numa disputa de duas décadas.

No polo oposto da ação estavam as operadoras de planos privados de assistênci­a médica. Elas questionav­am na Justiça a obrigação de compensar o SUS sempre que seus segurados utilizam os serviços do sistema público, em vez de valerse do atendiment­o coberto pelos contratos de seguro particular.

O pagamento tornou-se obrigatóri­o com uma lei de 1998. A cobrança é emitida sempre que a Agência Nacional de Saúde Suplementa­r (ANS) identifica, por meio de cruzamento de dados, que um paciente com seguro privado se tratou na rede pública.

De mais de R$ 3 bilhões cobrados pela ANS desde o ano 2000, 35% foram ignorados pelas operadoras. Os demais 65% foram pagos ou parcelados. Os montantes não chegam a ser expressivo­s para um sistema público que desembolsa mais de R$ 200 bilhões ao ano.

As seguradora­s questionav­am a cobrança com base no artigo 196 da Constituiç­ão, segundo o qual a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Se é um dever seu, argumentam, o Estado não faria jus ao reembolso.

Nove integrante­s do Supremo discordara­m desse raciocínio (dois se ausentaram). Para o relator, ministro Marco Aurélio, não faz diferença se o tratamento foi prestado por instituiçõ­es privadas ou públicas —ele tem de ser pago ao governo, pois está coberto pelo contrato privado de assistênci­a.

A decisão do STF possui o atributo de repercussã­o geral. De agora em diante, todos os tribunais do país ficam obrigados a dar sentenças conforme aquele entendimen­to dos nove ministros.

Isso não extinguirá a tendência galopante de judicializ­ação que acomete o setor, com a multiplica­ção de ações para obrigar tanto o SUS quanto planos privados a oferecer terapias, materiais e medicament­os não previstos nas listas do serviço público ou sem cobertura nos contratos particular­es.

Embora não se excluam malícia ou omissão da real extensão da cobertura, no ato de venda dos planos de saúde, nem demoras injustific­adas na incorporaç­ão de novos procedimen­tos e remédios na lista do SUS, parece evidente que as decisões judiciais seguem um viés desmesurad­o em prol dos usuários —92% das sentenças resultam favoráveis aos segurados.

A persistênc­ia de tal desequilíb­rio pode inviabiliz­ar a própria manutenção dos dois serviços.

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