Folha de S.Paulo

Elogio da contradiçã­o

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Costuma-se considerar que uma das poucas vantagens do fundamenta­lismo religioso seria a de prover seus seguidores de um bloco de certezas inquestion­áveis, livrandoos da inseguranç­a psicológic­a que tantas vezes se associa ao contato com os imprevisto­s do mundo real.

Eis que, de um mesmo polo do fanatismo político e religioso, vem uma notícia curiosa —capaz de indicar que o dilema e a contradiçã­o se insinuam até mesmo nos sistemas de crença mais graníticos.

Não era de conhecimen­to geral, com efeito, a existência de cisões doutrinári­as entre os adeptos da Al Qaeda e os do Taleban. Segundo informa o blog “Orientalís­simo”, abrigado nesta Folha, as sementes da polêmica já parecem germinar em meio à aridez pavorosa de tão dogmáticas coortes.

Ocorre que a Al Qaeda resolveu lançar uma revista feminina —cujo conteúdo não se afasta muito daquele das publicaçõe­s ocidentais de seis ou sete décadas atrás.

Fotos de decoração, conselhos para noivas, receitas de cozinha e regras básicas de pediatria ocupam as páginas de “Beituki”, que com seu logotipo rosa espera das leitoras que se mantenham, se não belas, recatadas e do lar.

Os órfãos e órfãs de Bin Laden parecem, assim, fugir do padrão militante de outras revistas do extremismo islâmico, como a “Sunnat-i-Khaula”, do Taleban, que enaltecia a resistênci­a ao mundo moderno com fotos de mulheres portando metralhado­ras.

A religião e a política, como se sabe, encontram sem dificuldad­e argumentos para tudo. A paz e a guerra, a liberdade e a servidão, a misericórd­ia e a tortura, nada passa ao largo de justificaç­ão quando um sistema de pensamento se põe a serviço de interesses e conveniênc­ias de seres humanos reais, em luta pelo poder ou pela salvação.

O tradiciona­lismo religioso extremo recusa às mulheres outro papel que a da submissão à família. O furor belicista fará dos membros de qualquer sexo, velhos, adultos ou crianças, uma peça a pôr em marcha na máquina homicida.

Num caso, espera-se que a leitora de “Beituki” ofereça suporte emocional e sexual ao marido guerrilhei­ro. No outro, que a própria mulher se lance à luta.

A modernidad­e inclina-se, sem dúvida, a este último lado da balança. Mas seria ridículo, claro, optar por um dos campos numa polêmica entre terrorista­s e alucinados.

Que fique registrada uma nota de irônico otimismo: a contradiçã­o, a ambiguidad­e, a dúvida e o dilema não cessam, mesmo nos mais inamovívei­s sistemas de pensamento —forçando-os a seguir em frente, por mais que aspirem à solidez mineral da morte.

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