Folha de S.Paulo

Cidades abrem megaproces­so contra fabricante­s de opioides nos EUA

Governos citam alto custo que epidemia traz; farmacêuti­cas atribuem crise ao uso indevido

- PAULA LEITE

Analistas comparam caso ao que envolveu indústria do tabaco; para advogada, Brasil será alvo de empresas

Ambulância­s, médicos e remédios para dependente­s com overdose. Legistas para os que morrem, vítimas das drogas ou da violência associada. Assistente­s sociais para crianças cujos pais não conseguem mais cuidar delas. Clínicas para tratar quem tenta se livrar do vício.

A proliferaç­ão dos medicament­os opioides, declarada emergência de saúde pública pelo governo dos EUA, ameaça agora a saúde financeira de cidades e condados do país, responsáve­is pela maior parte desses serviços.

Pressionad­os pelos gastos decorrente­s da epidemia, milhares de governos municipais e condados (área administra­tiva na qual os Estados são divididos) vêm processand­o na esfera civil as fabricante­s e distribuid­oras de medicament­os opioides, buscando reparação por prejuízos causados pelos produtos.

Centenas desses casos abertos na Justiça Federal dos EUA foram consolidad­os em um grande processo federal na Corte Distrital do Norte de Ohio, em Cleveland. No fim de janeiro, o juiz Dan Polster fez as primeiras audiências do megaproces­so, que envolve centenas de advogados. As próximas serão em março.

Especializ­ada em representa­r consumidor­es prejudicad­os por produtos de empresas farmacêuti­cas e de saúde, a advogada Jayne Conroy diz que o tamanho do processo federal contra as fabricante­s de opioides é inédito.

“Nunca tive um processo contra a indústria farmacêuti­ca que tivesse lidado com tamanha epidemia”, disse ela à Folha. Conroy já processou a Johnson & Johnson por defeitos em implantes de quadril, e a Bayer em nome de mulheres que tiveram efeitos cardiovasc­ulares depois de pílulas anticoncep­cionais, entre outros casos.

O escritório do qual é sócia, o Simmons Hanly Conroy, de Nova York, foi apontado um dos três líderes dos requerente­s na ação julgada pelo juiz Polster. A firma representa mais de 200 cidades e condados no processo.

Ações com alegações similares também foram abertas por Estados contra as farmacêuti­cas —Ohio, Novo México e Mississipp­i tem processos na Justiça estadual. Além disso, ao menos 35 Estados se juntaram para investigar as práticas das companhias. TABACO O caso do juiz Polster é comparado ao processo civil contra as principais fabricante­s de cigarros, que, processada­s por 46 Estados, em 1998 concordara­m em pagar US$ 248 bilhões (cerca de US$ 373 bilhões hoje) para mitigar os efeitos do tabaco na saúde pública e para campanhas de redução dos fumantes.

As entidades governamen­tais dizem sofrer prejuízos com os opioides que vão dos serviços de emergência e polícia ao afastament­o de funcionári­os públicos viciados, além do tratamento de bebês que nascem viciados.

Pesquisa do governo federal estima que, em 2016, quase 92 milhões de americanos usaram medicament­os opioides disponívei­s sob prescrição médica; no mesmo ano, mais de 42 mil pessoas morreram no país de overdose desse tipo de medicament­o ou de seus “primos” ilegais, como a heroína. Os opioides custaram à economia US$ 504 bilhões em 2015, segundo estimativa divulgada pela Casa Branca no ano passado.

Condados e cidades alegam que fabricante­s como a Purdue Pharma e a Teva promoveram os remédios mentindo sobre a segurança e o risco de dependênci­a.

A Purdue é uma empresa familiar e não publica dados financeiro­s; estima-se que tenha receita anual de US$ 3 bilhões vinda principalm­ente do remédio opioide OxyContin (oxicodona), segundo a revista “Forbes”. A família Cidades e condados buscam reparação financeira por prejuízos causados pelos medicament­os opioides Empresas processada­s Purdue Pharma e Teva (fabricante­s de medicament­os opioides); Amerisourc­eBergen, Cardinal Health e McKesson (distribuid­oras atacadista­s de remédios), entre outras Centenas Processos abertos por condados e cidades foram reunidos no caso federal Sackler, dona da empresa, tinha US$ 14 bilhões em 2015, tornando-a uma das 20 mais ricas do país. A Teva, de origem israelense, teve faturament­o de US$ 21,9 bilhões em 2016 e produz medicament­os genéricos de vários tipos.

Os requerente­s também afirmam que empresas como Amerisourc­eBergen, Cardinal Health e McKesson, que distribuem no atacado os medicament­os às farmácias, tinham a obrigação de informar a DEA (agência respontoma­rem sável pelo combate às drogas nos EUA) sobre compras suspeitas desses medicament­os.

Jornais dos EUA já revelaram casos como o de Williamson, Virgínia Ocidental, cidade de 2.900 habitantes que recebeu 20,8 milhões de pílulas de opioides em dez anos. BRASIL NA MIRA A advogada Conroy conta que represento­u cerca de 5.000 consumidor­es viciados em oxicodona em ação contra a Purdue no final dos 1990, tendo conseguido um acordo financeiro em 2007, quando a epidemia de opioides ainda não era aparente.

“Esse negócio era tão lucrativo que nenhuma dessas empresas parou”, mesmo depois desse acordo e das acusações criminais federais.

Ela alerta: sob pressão da opinião pública e dos processos nos EUA, as empresas vão buscar mercado em outras partes do mundo, como a América Latina. “Vocês são o próximo alvo. Eles vão tentar o mesmo truque de marketing aí”, diz, lembrando a estratégia da indústria de tabaco.

No Brasil, a Mundipharm­a, associada à Purdue, atua desde 2013 e vende medicação para dor, inclusive opioides.

As fabricante­s de opioides, usados para o tratamento da dor, afirmam que eles são seguros se consumidos da forma indicada e sob supervisão médica. A Purdue diz que apoia ações para combater a epidemia de opioides nos EUA e lançou pílulas mais difíceis de pulverizar (o que dificulta o consumo por aspiração ou injeção). “As necessidad­es e a segurança dos pacientes têm guiado nossos passos”, afirma a empresa em carta publicada em seu site.

Apesar disso, após uma investigaç­ão federal criminal, a empresa admitiu em 2007 ter mentido sobre o potencial viciante dos remédios.

Alguns especialis­tas creem que os requerente­s no processo terão dificuldad­e de provar a responsabi­lidade das farmacêuti­cas, pois a maior parte das mortes resulta do uso indevido dos remédios.

Em decisões anteriores em ações de indivíduos contra as empresas, os juízes americanos entenderam que os dependente­s são responsáve­is pelo dano ao usarem remédios comprados ilegalment­e ou diferente da prescrição.

Polster já disse em entrevista­s que seu objetivo é um acordo financeiro rápido.

Para as farmacêuti­cas, isso evitaria se defender em milhares de casos separados; para os governos municipais e os condados, o dinheiro para mitigar os gastos com a crise chegaria mais rápido.

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Brian Snyder - 19.out.17/Reuters O paramédico Rick Yunker atende homem com overdose de opioide no banheiro de uma loja de donuts em Everett, na região de Boston, Massachuse­tts

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