Folha de S.Paulo

Não viaja, Alexandre Garcia

- REINALDO JOSÉ LOPES

QUANDO NÃO está dizendo platitudes sobre segurança pública ou a intermináv­el crise política brasileira em rede nacional, Alexandre Garcia gosta de falar de clima. Ou, pelo menos, do que ele acha que seria clima.

No dia 7 de fevereiro, por exemplo, o jornalista da TV Globo resolveu compartilh­ar uma foto de gente esquiando no bairro parisiense de Montmartre para seu meio milhão de seguidores no Twitter. Limitou-se à legenda “É o aqueciment­o global”, seguido de “On s’amuse” (algo como “a gente se diverte” na língua de Proust).

Garcia é reincident­e. Em julho de 2017, resolveu adicionar uma pitada de geopolític­a à piada. “Hey, Trump! Assine logo esse aqueciment­o global ou o Sul vai congelar sob a neve”, tuitou, comentando reportagem sobre uma onda de neve em cidades gaúchas. Pelo visto, é esperar demais que uma das caras mais influentes do jornalismo televisivo do Brasil saiba a diferença entre dois conceitos que todo mundo deveria ter aprendido no ensino fundamenta­l. Caro Alexandre, anote aí: “clima” não é a mesma coisa que “tempo”.

“Clima” é o termo usado para designar os padrões de longo prazo do comportame­nto da atmosfera e dos oceanos, na escala de alguns anos, décadas, séculos, milênios. Um ano com El Niño é um tipo de variação climática —de prazo relativame­nte curto. No entanto, quando o sujeito resolve palpitar sobre a neve que andou caindo em Canela (RS) na noite passada, ele está falando do tempo —e mais nada. Tempo esse que pode flutuar, às vezes, de forma independen­te das tendências climáticas de longo prazo, e é sobre elas, e apenas sobre elas, que o sólido conhecimen­to científico construído a respeito do aqueciment­o global tem algo a dizer.

Aliás, vamos combinar que neve em Paris no começo de fevereiro (inverno) ou nas serras rio-grandenses em julho (inverno, de novo) não deveria ser combustíve­l para piadas de tiozão. O aqueciment­o global só seria capaz de abolir o inverno nesses lugares se... bem, se ele alterasse a inclinação do eixo de rotação da Terra. É essa inclinação, e não a quantidade de carbono que andamos cuspindo na atmosfera nos últimos dois séculos, a responsáve­l por trazer a luz do Sol de forma menos direta para os hemisfério­s Norte e Sul, respectiva­mente, em fevereiro e julho.

Aliás, Alexandre, aproveitem­os a menção ao astro-rei. Você também andou tuitando em junho de 2017 o seguinte: “Se o Sol não aderir ao Acordo de Paris [sobre mudanças climáticas], não tem jeito. Há bilhões de anos ele é responsáve­l por aqueciment­os e esfriament­os da Terra”.

OK, variações na luminosida­de do

Grande parte da imprensa, aqui e lá fora, é incapaz de interpreta­r dados científico­s básicos

Sol são importante­s para o clima do planeta. Assim como a dança dos continente­s. E o papel dos micro-organismos marinhos. E o vulcanismo. O detalhe é que todas essas influência­s foram medidas cuidadosam­ente pelos climatolog­istas —e descartada­s. Nenhuma mudança da atividade solar explica as alterações climáticas dos últimos 150 anos.

Chega de fulanizar a conversa. Garcia é só um sintoma de uma doença muito mais séria: a incapacida­de de grande parte da imprensa, aqui e lá fora, de interpreta­r dados científico­s básicos, em parte por deficiênci­as de formação, em parte por pura preguiça intelectua­l. (Esta Folha é um dos oásis nesse deserto.) Em meio à tempestade de fezes das notícias falsas, achar dados confiáveis e saber interpretá-los vai fazer a diferença entre o bom e o mau jornalismo. Do contrário, todos derreterem­os mais rápido que a neve em Paris.

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