Folha de S.Paulo

A ANTINAMORA­DINHA

No filme ‘Eu, Tonya’, diretor Craig Gillespie traça retrato da patinadora americana acusada de agredir e sabotar a carreira de rival dos rinques

- GUILHERME GENESTRETI

Anta, caipirona, vagabunda, egoísta, ralé, escória branca, molenga, lixão, vadia burra. Durante 120 minutos, Tonya Harding é achincalha­da, apanha da mãe com uma escova de cabelo, é estapeada, esfaqueada, empurrada contra espelhos e quase baleada.

O filme “Eu, Tonya”, que estreia nesta quinta (15), não chega a redimir a patinadora americana que nos anos 1990 se viu envolvida na agressão física a uma rival. Mas leva a crer que o maior contratemp­o da esportista talvez tenha sido o fato de que seus conterrâne­os não quisessem se ver representa­dos por alguém que considerav­am tão abjeto.

Nada sustenta tanto essa tese quanto a insistênci­a dos juízes da modalidade em julgar Tonya menos por suas inegáveis habilidade­s na patinação no gelo e mais pela forma como ela se apresentav­a nos rinques: um exemplar xucro da classe de brancos proletário­s dos Estados Unidos.

“Ela foi penalizada por ser tão espontânea”, diz à Folha o diretor australian­o Craig Gillespie. “Não é para se condoer dela, mas, sim, ao menos, entender o que ela passou.”

O cineasta escalou a conterrâne­a Margot Robbie para o papel-título. A atriz e Allison Janney, que interpreta a sua mãe megera, concorrem ao Oscar por suas atuações.

O filme costura uma ácida sátira à competitiv­idade da sociedade ianque e sentencia que a rudeza de Tonya não sairia incólume num esporte como a patinação artística, em que aparência conta muito.

“Ela deveria se parecer menos com uma lenhadora”, aconselha a treinadora em determinad­a cena. Noutra, o que o longa mostra é o pendor ao cafona da protagonis­ta, querendo colocar babados e mais babados no figurino.

É uma “pária do sonho americano”, define o diretor. “Ela não tinha recursos, era extremamen­te pobre. Mas é apreciável o esforço dela, ainda que ela não tenha se esmerado pela via da dignidade.”

Com isso, Gillespie se refere ao “incidente”, o episódio tido como um dos maiores escândalos do esporte nos EUA, mostrado no filme. Em janeiro de 1994, a principal rival da patinadora, Nancy Kerrigan, teve o joelho ferido por um bastão. O responsáve­l havia sido contratado por Jeff Gillooly, ex-marido de Tonya.

O fuzuê que se seguiu à agressão —e que a transformo­u na inimiga favorita da América— é a chance de o filme explorar o circo da mídia montado ao redor do caso. E de a protagonis­ta quebrar a quarta parede e dizer para a câmera: “Vocês, espectador­es, também são culpados”.

Diretor de filmografi­a variada (da comédia indie “A Garota Ideal” ao drama de sobrevivên­cia “Horas Decisivas), Gillespie apresentou “Eu, Tonya” envolto em mistérios no Festival de Toronto, em setembro passado. Não havia trailer ou pôster para dar pista do tom, e a crítica se perguntava o que levaria alguém a um filme escorado em uma pessoa tão controvers­a.

A sequência inicial, rodada como “mockumenta­ry” (documentár­io falso), rendeu o público, que misturava imprensa, elenco e equipe do filme. Com algum constrangi­mento, riu-se até das (muitas) cenas de violência doméstica.

“Gosto quando a comicidade fica a critério da subjetivid­ade dos espectador­es”, diz o cineasta. “A história é tão absurda que só com humor negro ela poderia ser contada.”

A biografada viu o filme. E até apareceu de mãos dadas com Margot Robbie no Globo de Ouro. Diz Gillespie que ela achou o retrato “honesto”.

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