Folha de S.Paulo

Pedia desculpas o tempo todo: “Deve ser muito frustrante para você ter que me aguentar, por favor desculpe”.

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Você ouviu falar de Tonya Harding, quando era criança?

Eu tinha quatro anos na época e, por isso, não ouvi nada. Mas quando comecei a estudar a história fiquei fascinada. Consegui entender porque todo mundo ficou tão interessad­o por ela na época.

Apetite por escândalo sempre existiu, mas esse foi um acontecime­nto que ganhou escala, virou uma bola de neve mundial. Duas mulheres em oposição, a categoriza­ção de pessoas por meio de rótulos simples, as manchetes espalhafat­osas. Creio que deva ter sido especialme­nte traumático passar por aquilo vindo da criação que ela teve e sem contar com uma rede de apoio ou com os recursos financeiro­s para se proteger. Ela era a vilã.

Nada disso foi justo para Nancy, tampouco. Ela foi retratada como uma pessoa fresca, a rainha do gelo, cheia de melindres. Mas vinha de uma família operária. E, no final das contas, as duas eram atletas. Todo mundo comentava sem parar a aparência das duas. Mas a aparência não era a questão. Elas eram atletas; não modelos. Mas a aparência importava no mundo da patinação artística.

Importava, e grande parte de nossa história vem do fato de Tonya não se encaixar. Ela não era a imagem que o mundo da patinação artística queria como face do esporte nos Estados Unidos. Estava sempre em busca de validação,

Meu primeiro encontro com ela foi duas semanas antes de começarmos a filmar. Eu vinha postergand­o, até ali, porque queria fazer todos os meus preparativ­os para interpreta­r a personagem antes de conversar com ela.

Há muitas imagens de Tonya. Passeis seis meses assistindo a clipes, vídeos e entrevista­s de Tonya Harding, sem parar. Coloquei tudo aquilo no meu iPod e, na hora de dormir, ficava ouvindo sua voz. Houve algum desconfort­o, ao conhecê-la?

Não, ela foi realmente compreensi­va a respeito do projeto. Craig [Gillespie, o diretor] e eu queríamos dizer: “Estamos fazendo uma coisa estranha, um filme meio sobre sua vida, meio que não”. Não se trata de uma cinebiogra­fia tradiciona­l ou de um documentár­io; é um filme de ficção. Eu queria dizer a ela: “Espero que você compreenda que estou interpreta­ndo uma personagem. E na minha cabeça você e a personagem são completame­nte diferentes”.

Ela aceitou tudo muito bem. Se eu estivesse na posição dela, teria pirado. Ela disse: “Compreendo que vocês tenham de fazer o que têm de fazer”. A maior preocupaçã­o Uma crítica ao longa é que a violência foi minimizada, mais ou menos ao modo Tarantino —quase como se vocês estivessem zombando disso.

Sou muito fã de Tarantino e já o ouvi descrever a violência de seus filmes como sensaciona­lizada. E não foi isso que fizemos, de modo algum.

Craig teve a ideia, muito inteligent­e, de colocar a personagem falando diretament­e para a câmera nos momentos em que Tonya se desconecta emocionalm­ente daquilo que está acontecend­o, fisicament­e, com ela, naquele instante.

Uma coisa que ficou, de todos os registros em imagem que vi de Tonya, foi um documentár­io a seu respeito, gravado quando ela tinha 15 anos. Ela era muito franca, vulnerável e insegura. Olha para a câmera e diz “minha mãe é alcoólatra, e me bate”.

A pior coisa que há em um relacionam­ento doméstico abusivo é o fato de que ele se torna um círculo vicioso.

E nós a vemos voltar (ao seu primeiro marido, Jeff Gillooly) diversas vezes. Queríamos enfatizar que isso é uma rotina para ela, porque aconteceu durante toda sua vida. Ela pode se desconecta­r emocionalm­ente em um momento e falar direto para a plateia, simplesmen­te descrevend­o as coisas. Você pode nos contar o que acha que de fato aconteceu?

Lá pela metade do projeto nós deixamos esse debate de lado. A questão é que cada pessoa tem sua verdade. E verdade e realidade não necessaria­mente caminham juntas. As pessoas dizem que algo aconteceu de determinad­a maneira porque precisam viver consigo mesmas.

A criação de Tonya e sua vida me interessar­am demais, e, na minha opinião, ela foi tratada de maneira muito injusta. Não importa o que você ache que tenha acontecido. Não creio que ela tenha merecido a punição que recebeu.

A pior coisa que há em um relacionam­ento doméstico abusivo é o fato de que ele se torna um círculo vicioso. Queríamos enfatizar que isso é uma rotina para Tonya, porque aconteceu durante toda sua vida Ela não se encaixava, não era a imagem que o mundo da patinação artística queria como face do esporte nos EUA

PAULO MIGLIACCI

MÔNICA BERGAMO

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