Folha de S.Paulo

O miniaturis­ta de Damasco

Maquetes fazem linha do tempo da destruição na Síria

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em árabe que descreve sensação semelhante à saudade, uma nostalgia somada ao sentimento de não pertencer a um lugar.

Logo em seu primeiro ano nos EUA, os colegas de curso resolveram ir a um bar em uma sexta-feira. Hafez —que, como tantos outros muçulmanos, não bebe— preferiu ficar em casa. Colocou os clássicos da libanesa Fayruz para tocar e começou a explorar os materiais que tinha ao seu redor. “Cinco ou seis horas depois me dei conta de que tinha recriado a fachada de uma casa tradiciona­l síria”, ele conta.

Damasco é considerad­a a capital mais antiga do mundo e uma das cidades habitadas continuame­nte há mais tempo. Sua arquitetur­a combina milênios de história, misturando influência­s gregas, romanas, bizantinas, árabes e otomanas.

Hafez passou a enfeitar seu estúdio com maquetes de casas sírias, usando a técnica aprendida na faculdade. O trabalho miniaturiz­ado era oposto ao que desempenha­va em horário comercial, projetando arranha-céus para uma firma de arquitetur­a americana.

Em 2011, porém, com o início da guerra na Síria, ele interrompe­u a produção de maquetes. Em seu país natal, bairros e cidades inteiras eram destroçado­s por bombas, e hoje estima-se que os mortos já somem meio milhão.

“Nos dois primeiros anos de guerra civil, eu não peguei uma caneta na mão. Estava chocado com a destruição. Era extenuante ver, a distância, como tantas cidades eram transforma­das em poeira.”

Em 2013, Hafez decidiu retomar a série de maquetes e forçou as miniaturas a acompanhar­em o que estava acontecend­o na realidade, transporta­ndo a destruição dos prédios para sua arte: “Se meu trabalho era inicialmen­te sobre a nostalgia, hoje é mais sobre a devastação, e essa transição não foi planejada. É como a história: apenas aconteceu. As miniaturas são uma linha do tempo”.

Paralelame­nte a esse trabalho, o sírio abordou em outra série a crise dos refugiados, criando miniaturas de casas e cidades colocadas dentro de malas, para mostrar os diversos mundos que os migrantes carregam consigo. Era outra maneira de pôr sua própria linha do tempo em sua arte: nos últimos anos, sua família abandonou a Síria e pediu asilo na Suécia.

Hafez descreveu à Folha os materiais que usa em sua mágica de transforma­r elementos leves em uma maquete aparenteme­nte pesada, mas prefere que a técnica permaneça secreta: “Quero que os espectador­es pensem que as miniaturas são feitas de concreto, como os prédios, para que pareçam prestes a desmoronar”, afirma. “Se meu trabalho não tiver esse efeito, o risco é de que se torne uma casa de boneca, e odeio isso. Não são casas de boneca!” DETALHES A preocupaçã­o em evitar que as miniaturas se tornem, em suas palavras, “kitsch”, faz com que Hafez se debruce por meses em cada peça, cuidando, com esmero, de cada detalhe: “O realismo é o que cativa a maior parte das pessoas. Só sei que uma peça está pronta quando tiro uma fotografia dela de perto e me parece real”.

Para Hafez, a questão teórica que pauta seu trabalho é: “De que maneira a arquitetur­a pode contar uma história?”. Esse foi também o fio condutor de outras obras, como suas maquetes da infame prisão iraquiana de Abu Ghraib, onde soldados americanos torturaram detentos, em sua maioria árabes.

O artista defende, ainda, que as miniaturas são capazes de sensibiliz­ar o público de formas que reportagen­s e incontávei­s postagens de Facebook não conseguem.

Uma exposição recente de suas maquetes na Universida­de de Yale mostrou que o trabalho também convenceu os críticos. Frauke Josenhans, curador da mostra, disse ao “New York Times” que a obra do sírio o fascinou por completo: “Ele ilustra o conflito na Síria, mas não é apenas algo político. É também profundame­nte pessoal e reflete o que significa não poder voltar ao seu país, estar separado da família”.

Como arquiteto e partindo de sua paixão pela arquitetur­a tradiciona­l síria, Hafez retrata a destruição ao mesmo tempo em que se pergunta quanto de sua herança poderá —se de fato puder— ser recuperada: “A reconstruç­ão dependerá do nível de destruição. Será especialme­nte difícil porque nunca houve nenhum esforço para documentar a arquitetur­a local. Nós pensávamos que essas construçõe­s fossem durar para sempre. Elas estavam ali havia séculos!”.

Ele evita sucumbir ao pessimismo, mas reconhece que boa parte do que desmoronou jamais será reerguida. Acha que o futuro será semelhante à reabilitaç­ão da Europa após a Segunda Guerra Mundial. “Foi feita uma escolha seletiva daquilo que seria reconstruí­do e do que seria feito de novo, do zero.”

Hafez também destaca o descuido do governo como fator de destruição: “A negligênci­a é bastante comum em nossas culturas e afeta a preservaçã­o da arquitetur­a”. Segundo ele, tanto no Brasil quanto na Síria “a poluição cobre os prédios com uma fina camada negra e as pessoas não cuidam do exterior das construçõe­s. Instalam equipament­os de ar-condiciona­do em fachadas históricas. Isso aparece em meu trabalho de maneira sutil, por exemplo, quando você vê um cano exposto em uma bela parede exterior”.

Ao final, a Folha pergunta se suas miniaturas também poderiam ser usadas para projetar um futuro, imaginando como será a Síria quando for finalmente reconstruí­da, após o conflito. Isto poderia ajudar a curar a sua ferida? “Eu ainda não estou pronto para isso”, diz. “Talvez um dia.”

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Fotos Divulgação
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“Intisarna” (2016, no alto) reproduz prédio destruído, e obra da série “Unpacked: Refugee Baggage” (2017) mostra casa dentro de mala

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