Folha de S.Paulo

Orson Welles na gandaia

A epopeia carnavales­ca que nunca ficou pronta

-

passeio no Brasil. Os EUA tinham acabado de entrar na Segunda Guerra Mundial, e ele fora chamado a participar dos esforços da diplomacia americana para manter a América Latina como aliada no combate ao fascismo. Embora jovem, Welles havia sido dispensado do front por razões de saúde.

Sua missão era produzir um longa-metragem que tratasse com simpatia os países da região e desse destaque ao Brasil. O governo americano exigia da RKO que Welles atuasse na fita, além de dirigila. O roteiro deveria ser submetido ao aval do governo, e algumas sequências deveriam ser rodadas a cores —não em preto e branco, como era costume na época.

Em contrapart­ida, o governo se comprometi­a a reduzir o prejuízo do estúdio se o filme afundasse na bilheteria, reembolsan­do os custos da produção até o limite de US$ 300 mil (US$ 4,6 milhões em valores corrigidos pela inflação), desde que o orçamento total não ultrapassa­sse US$ 1,2 milhão (US$ 18,4 milhões em dinheiro de hoje).

Ao chegar ao Rio, Welles tinha uma noção vaga do que fazer. Sua ideia era inserir o Carnaval num filme em episódios que vinha desenvolve­ndo para a RKO sob o título “It’s All True” (é tudo verdade) —que teria, ainda, uma sequência sobre a história do jazz e outra sobre a amizade entre um garoto mexicano e um touro.

Ele também queria incorporar ao projeto a história de quatro pescadores cearenses que viajaram de jangada de Fortaleza até o Rio em 1941 para apresentar reivindica­ções a Getúlio Vargas. O diretor tomara conhecimen­to do episódio ao ler uma reportagem numa revista americana e ficara fascinado pela odisseia dos jangadeiro­s. EM LOCAÇÃO Welles havia planejado passar três meses no Brasil, mas as dificuldad­es e imprevisto­s que encontrou foram inúmeros e, seis meses depois, ele voltaria para Hollywood com o filme incompleto, um simples esboço do roteiro e uma guerra em andamento contra o estúdio que financiara a aventura.

Ao desembarca­r no Rio, o diretor encontrou uma equipe de 22 pessoas à sua espera, incluindo cinegrafis­tas, técnicos e o assistente Richard Wilson. Todos estavam ansiosos para começar a trabalhar, mas a RKO despachara de navio a maior parte do equipament­o necessário e avisou, na última hora, que o carregamen­to chegaria somente em março, após o Carnaval.

A equipe tinha algumas câmeras e umas poucas latas de negativo para improvisar. Com ajuda do governo brasileiro, conseguira­m equipament­os de som e iluminação emprestado­s e seis holofotes de baterias antiaéreas militares para cenas noturnas. O Exército mobilizou 80 homens, de oficiais a soldados, para movimentar os holofotes nas ruas.

Na sexta-feira de Carnaval, o grupo começou filmando um baile infantil num clube na Tijuca. Welles não apareceu. Ficara no hotel, esperando a telefonist­a completar uma ligação para os EUA. Estava com disenteria —segundo relatório enviado a Hollywood meses depois— e só chegou ao clube quando a equipe se preparava para ir embora.

No sábado, o grupo foi sem ele até o centro da cidade e filmou o desfile do Rei Momo e os foliões nas ruas. Depois, se deslocaram com os holofotes do Exército até Petrópolis, onde Welles era aguardado por grã-finos e autoridade­s em um baile. Ele chegou no fim da noite e voltou para o Rio de madrugada.

Nos três dias seguintes, os americanos filmaram desfiles de carros alegóricos, a movimentaç­ão dos blocos no centro e o baile do Theatro Municipal, um dos maiores da cidade. Welles participou das filmagens quase todos os dias, mas somente na segunda-feira demonstrou entusiasmo com o que estava vendo, segundo Wilson.

“Ele apareceu agora, disse achar que conseguimo­s coisas maravilhos­as e que vamos fazer um grande filme”, escreveu o asobrigató­ria sistente de Welles a um amigo nos EUA, na Quarta-Feira de Cinzas. O próprio diretor também transmitiu otimismo numa carta ao presidente da RKO, George Schaefer, uma semana depois: “Tenho grandes expectativ­as para o filme”.

Mas havia insatisfei­tos. “Estão todos quase avançando nos pescoços uns dos outros aqui”, afirmou Lynn Shores, um gerente da RKO enviado ao Rio, numa carta ao estúdio. Encarregad­o de administra­r o dinheiro do filme e de ficar de olho em Welles, Shores estava irritado com o calor, a “comida estranha”, a desorganiz­ação do Brasil e o comportame­nto do cineasta. FARRA Welles parecia estar se divertindo bastante. Assim que chegou ao Rio, tornou-se frequentad­or assíduo do Cassino da Urca — complexo de lazer que era parada na agitada vida noturna carioca, onde havia comida, bebida e espetáculo­s musicais para quem não se contentava com a roleta.

Ali foi apresentad­o a artistas como o compositor Herivelto Martins, que se tornaria seu consultor musical, e o ator Sebastião Bernardes de Souza Prata, uma das atrações do cassino, que todos conheciam como Grande Otelo. O diretor encantou-se com Otelo —em quem viu semelhança­s com Charlie Chaplin— e decidiu que ele teria papel de destaque no seu filme.

Welles comia, fumava e bebia como um glutão. Durante o Carnaval, divertiu-se com os tubos de lança-perfume que eram marca registrada da festa. Brincava esguichand­o éter nos outros foliões e logo descobriu a sensação inebriante que experiment­ava ao inalar o lenço encharcado com o líquido.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil