Folha de S.Paulo

O diretor deixou instruções para que um colaborado­r desse um relógio de presente a Linda Batista.

-

ÁGUA FRIA Duas semanas depois do Carnaval, Shores voltou a escrever à RKO para informar sobre as andanças de Welles e avisar que as coisas iam mal: “Confidenci­almente, acredito que ele percebe que não tem nada promissor aqui. A filmagem do Carnaval foi uma grande decepção para todos nós, e sei que para ele pessoalmen­te”.

Os negativos precisavam ser enviados aos EUA para revelação, e não havia, àquela altura, condições de verificar a qualidade do material filmado —mas todos tinham certeza de que ele era insuficien­te.

O plano era aguardar a chegada do navio com os equipament­os de Hollywood e reencenar o Carnaval em estúdio. Seria necessário construir cenários, encomendar fantasias e contratar dezenas de figurantes para as filmagens. Welles também teria que selecionar músicos, cantores e dançarinas e negociar com gravadoras brasileira­s os direitos autorais dos sambas que usasse.

A RKO fechou contrato com a Cinédia, uma produtora carioca que alcançara sucesso com chanchadas e dramalhões. E Welles propôs ao Cassino da Urca um acordo para usá-lo como cenário do número musical bombástico com o qual pensava em encerrar o filme.

Era preciso, também, mobilizar recursos para contar a saga dos jangadeiro­s no Rio, em Fortaleza e outras locações no Nordeste. Welles queria 300 figurantes para reencenar a chegada dos pescadores à baía de Guanabara e pediu ajuda ao DIP para conseguir dezenas de barcos e um avião para filmar a cena.

Os equipament­os enviados pela RKO chegaram em meados de março e a liberação pela alfândega demorou duas semanas. Como os cenários nos estúdios da Cinédia não estavam prontos e as negociaçõe­s com o Cassino da Urca não tinham sido concluídas, só foi possível gravar algumas cenas externas que talvez fossem aproveitad­as na montagem do filme.

Em abril, quando as filmagens na Cinédia finalmente tiveram início, os executivos da RKO começaram a se assustar com o que estava acontecend­o no Brasil. O orçamento do filme estava próximo de US$ 1,3 milhão (o equivalent­e hoje a US$ 20 milhões), ultrapassa­ndo o limite fixado pelo governo americano para sua contribuiç­ão financeira.

Era 56% mais do que o estúdio gastara para produzir “Cidadão Kane”, que fora mal nas bilheteria­s, apesar de muito elogiado pelos críticos. No fim de abril, as contas da RKO indicavam que a sequência brasileira de “It’s All True” já havia consumido um quarto do orçamento do projeto, e o estúdio previa que ainda seria necessário gastar o dobro disso para concluí-la. SINAL VERMELHO Após revelar os primeiros negativos recebidos do Rio, os executivos em Hollywood ficaram alarmados com o que viram. “Há muitas cenas mostrando pessoas do tipo negroide dançando com ou muito próximas de pessoas com pele mais clara”, descreveu um deles, Reginald Armour, num memorando endereçado à cúpula da RKO. “Isso irá prejudicar seriamente a exibição do filme em certas partes deste país [os EUA], particular­mente no Sul.” Sem a trilha sonora, o material bruto não transmitia a vibração da festa e era apenas uma sucessão de cenas repetitiva­s e incompreen­síveis, que entediaram os executivos americanos.

O governo brasileiro também encontrara motivos para se preocupar. No início de abril, uma equipe de Welles visitou quatro favelas para colher imagens do cotidiano nos morros do Rio. Filmaram barracos de madeira, mulheres lavando roupas e crianças brincando em vielas de terra com esgoto a céu aberto.

Assim que ficou sabendo, o diretor da divisão de divulgação do DIP, Alfredo Pessôa, chamou Wilson para conversar. “O senhor Welles sabe o que faz com seu filme, mas aqui não é como nos EUA, onde vocês podem mostrar tudo, inclusive coisas feias”, afirmou Pessôa, conforme memorando enviado no mesmo dia ao cineasta pelo seu assistente.

Havia ainda o descontent­amento da equipe. Muitos estavam cansados do Brasil e queriam voltar para casa. Reclamavam da incerteza sobre o futuro do projeto, das constantes mudanças de planos e das ausências de Welles —que, em geral, chegava atrasado e só encerrava o expediente de madrugada.

No fim de abril, a RKO decidiu intervir. Schaefer avisou que só mandaria mais dinheiro para o Rio se Welles aceitasse cortes no orçamento e enviou ao Brasil o vice-presidente do estúdio, Phil Reisman, com a missão de encerrar o projeto o quanto antes e levar todos de volta para os EUA.

No auge da crise, faltou negativo para filmar e dinheiro para pagar colaborado­res. Grande Otelo foi reclamar com Wilson e cobrou US$ 25 (US$ 383 em dinheiro de hoje) por dia de trabalho. Numa entrevista à TV Cultura em 1987, o ator contou que ganhou em dez dias o equivalent­e a dez meses do salário que recebia no Cassino da Urca.

Em meados de maio, um acidente nas filmagens tirou a vida de um dos jangadeiro­s cearenses, Manuel Olímpio Meira, o Jacaré. Welles trouxera os quatro pescadores até o Rio para a reconstitu­ição de sua chegada. Eles tentavam se aproximar da praia para filmar uma cena quando uma onda forte virou a jangada e atirou todos no mar. O corpo de Jacaré nunca foi encontrado.

O episódio abalou o ânimo de Welles e da equipe no momento em que tinham acabado de con- cluir o trabalho na Cinédia e se preparavam para a sequência do Cassino da Urca e a viagem ao Nordeste. O grupo só voltaria a filmar no fim do mês, quando os equipament­os foram transferid­os para a Urca. ROTEIRO Pressionad­o pela RKO a apresentar uma sinopse do filme, o diretor virou três madrugadas trabalhand­o num primeiro tratamento do roteiro. O documento tinha apenas cinco páginas de diálogos, mas descrevia algumas cenas e dava uma ideia do que Welles tinha em mente. “Parece muito bom no papel”, disse Reisman à RKO.

No filme, Welles representa­ria a si próprio —um diretor americano em viagem à América do Sul— e faria as vezes de narrador. Ele planejava contar a história do samba com didatismo, mostrando sua origem humilde nos morros cariocas e a maneira como a música contagiava a cidade durante o Carnaval.

Grande Otelo faria um sambista do morro à frente de um bloco de foliões pelas ruas da cidade. Em sua última cena, ele seria visto acordando, na Quarta-Feira de Cinzas, na mítica praça Onze —que serviu de palco para os desfiles das escolas de samba do Rio até ser demolida, em 1941, para a construção da avenida Presidente Vargas.

A história dos jangadeiro­s entraria no meio do filme, entre o episódio mexicano e o Carnaval. Após serem recebidos por Getúlio Vargas, os pescadores seriam arrastados pela festa popular antes de voltar ao Ceará. Embora visse semelhança­s entre o jazz e o samba, Welles cortou o episódio americano planejado no projeto original.

No fim, o diretor e a equipe pegariam o voo de volta para os EUA, e haveria uma sequência de imagens aéreas do Rio com a voz de Welles ao fundo. Ele faria um discurso em homenagem a Jacaré, mencionari­a sua morte trágica durante as filmagens e dedicaria o filme ao jangadeiro e seu “sonho de futuro”.

Welles aproveitou o documento para defender seu projeto e responder às críticas dos executivos da RKO. Disse que o filme mostraria o Carnaval como ele nunca fora visto antes no cinema e que teria sido impossível realizá-lo sem primeiro gastar tempo e dinheiro para conhecer o Brasil.

Comparou a dificuldad­e de filmar o Carnaval com a de filmar uma tempestade e alegou que seu método de trabalho era o único possível. Disse que preferia deixar que os brasileiro­s improvisas­sem diante das câmeras em vez de planejar cuidadosam­ente cada sequência antes de entrar no estúdio. “Eu não podia dizer a eles o que fazer. Eles tinham que me dizer”, escreveu aos executivos. “Nosso filme só terá um roteiro após sua conclusão na sala de montagem”, acrescento­u.

Mas talvez fosse tarde demais para explicaçõe­s. Em agosto, já de volta a Hollywood, Welles se desentende­udevezcoma­RKOeseu contrato foi rompido. Ele perdeu o controle sobre o material rodado no Rio e nunca concluiu o filme. Décadas depois, algumas imagens foram recuperada­s por seu assistente Wilson num documentár­io sobre a experiênci­a no Brasil, que ficou pronto em 1993, oito anos após a morte do diretor.

Num memorando enviado à RKO em junho de 1942, quando Welles partiu para a última etapa de sua aventura em Fortaleza, Phil Reisman escreveu que o resultado do trabalho no Rio parecia promissor. Mas o executivo ainda não estava certo de que o esforço iniciado no Carnaval daquele ano realmente valera a pena: “Orson Welles é um luxo que só Deus e o governo podem pagar”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil