Folha de S.Paulo

Abaixo o futebol perfeito

- JUCA KFOURI

RECENTE ARTIGO da revista inglesa “The Spectator” aborda a vídeoarbit­ragem (VAR) com o sabor do peculiar humor daquelas bandas britânicas.

“Quando o árbitro não tem certeza sobre algum acontecime­nto crucial no campo, ele convoca outro árbitro por meio de um fone de ouvido para ajudá-lo.

O outro árbitro está a muitas milhas de distância, assistindo à partida na televisão.

O árbitro paralisa o jogo e vai dar uma olhada numa tela de vídeo ao lado do campo.

E ele e o outro árbitro, a todas essas milhas de distância, falam sobre o que veem por dois ou três minutos, enquanto a torcida fica entediada e a dinâmica do jogo se perde. Então, ele toma a decisão: errada!

Ou talvez, quem sabe, a decisão certa. Uma decisão, enfim.”

Segue o articulist­a Rod Liddle, equivocado na humilde opinião deste que vos escreve, mas divertido: “Acho que, em breve, as dúvidas serão levadas para um painel de especialis­tas.

Ou, talvez, para um Tribunal Internacio­nal de Justiça.

Ou, ainda, em dia não muito distante, para representa­ntes de Jesus Cristo, Buda, Maomé, todos colados a uma TV em um quarto de hotel em algum lugar, discutindo sobre se o talentoso, ou histriônic­o, atacante Mohamed Salah, do Liverpool, mergulhou ou foi derrubado na área: ‘Falta clara no meu livro’, diz Maomé enquanto pega um salgadinho. ‘Bobagem, você está sendo tendencios­o’, responde Cristo, terminando sua lata de cerveja.”

E prossegue o jornalista: “Porque, na verdade, é disso que se trata, é isso que o VAR realmente é: por um jogo, se transforma em deus substituto, com poderes acima dos mortais.

É um apelo à onipotênci­a porque, hoje em dia, muito dinheiro está envolvido no futebol para as decisões serem tomadas por apenas um solitário ser humano.

As autoridade­s do futebol querem eliminar as dúvidas da vida. Só que sempre haverá dúvidas e não é um segundo homem com uma TV que mudará isso.

Nem que olhe as coisas em câmera lenta, porque o jogo não é jogado em câmera lenta, a menos que você seja um fã do Manchester United.

O movimento lento geralmente faz com que os carrinhos, as entradas por trás, pareçam muito piores do que realmente são, não importa quão experiente seja o observador.

Estão tentando fazer o futebol perfeito, apesar de tantos de nós saborearmo­s suas imperfeiçõ­es tanto quanto gostamos da sua habilidade, de sua magia.

Sim, nós podemos nos relacionar com as imperfeiçõ­es do futebol porque também temos as nossas.”

Por fim, apela: “Parem de tentar fazer o futebol perfeito: seus erros é que o fazem tão divertido”.

Desnecessá­rio repetir: apesar da graça do autor, que só faltou gritar “ódio eterno ao futebol moderno!”, o VAR chegou para ficar após resistir durante anos ao conservado­rismo.

Sem deixar de dizer que, para muitos, o futebol é o esporte mais popular do planeta exatamente por recusar as novidades e a ânsia por justiça.

O esporte não foi feito para ser justo, dizem, mas para ser emocionant­e.

Eis o desafio do VAR: fazer da espera pela decisão do tal deus, instantes tão emocionant­es como aqueles antes da cobrança de um pênalti.

Jornalista britânico fica contra a vídeo-arbitragem com argumentos típicos do melhor humor inglês

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