Folha de S.Paulo

Maioria dos venezuelan­os até 5 anos está desnutrida, diz comissão

Órgão interameri­cano de direitos humanos cita fome, falta de cuidado médico e tortura no país

- ESTELITA HASS CARAZZAI

OEA pede que países acolham refugiados; relatório foi produzido com dados de ONGs e órgãos internacio­nais

Sete em cada dez crianças venezuelan­as de até cinco anos estão desnutrida­s, e 15% deste contingent­e apresenta quadro agudo de desnutriçã­o, apontam dados de 4 dos 23 Estados do país obtidos pela Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos e divulgados nesta segunda (12).

A comissão, conhecida pela sigla CIDH e sediada em Washington, é um órgão autônomo criado pela Organizaçã­o dos Estados Americanos (OEA) para promover e proteger os direitos humanos no continente e conta com sete membros independen­tes.

Em um relatório de mais de 200 páginas, a CIDH destaca que a situação da Venezuela é “alarmante e gravíssima” e, além de fazer recomendaç­ões ao país, pede a solidaried­ade internacio­nal —em especial de países como o Brasil, que recebe imigrantes venezuelan­os fugidos da grave crise econômica, política e social.

Até a conclusão desta edição, Caracas não se manifestou sobre o documento.

“Eles [venezuelan­os] podem ser considerad­os refugiados, à luz da declaração de Cartagena”, afirmou o brasileiro Paulo Abrão, secretário­executivo da CIDH, mencionand­o a situação de grave alteração da ordem pública e reiterada violação aos direitos humanos. “É preciso demonstrar solidaried­ade.”

O Brasil registrou episódios recentes de agressão a venezuelan­os em Roraima, principal destino dos migrantes no país (texto leia abaixo). A CIDH informou solicitará informaçõe­s ao governo brasileiro, em especial sobre as investigaç­ões e as medidas que estão sendo tomadas para evitar novas ocorrência­s.

“Sabemos que existem profundas situações de pobreza e de exclusão nesses lugares. Essa reação adversa é uma atitude mais instintiva que racional. Mas não se pode tolerar isso”, afirmou o presidente da CIDH, o peruano Francisco Eguiguren.

Os dados sobre desnutriçã­o são alguns dos mais dramáticos do relatório da CIDH.

A comissão foi barrada pelo regime de Nicolás Maduro e não visitou o país para produzir o documento. As informaçõe­s foram colhidas por organizaçõ­es não governamen­tais, opositores e organismos internacio­nais.

Segundo o texto, 80% dos venezuelan­os afirmaram ter perdido peso involuntar­iamente em 2016: 8,7 kg em média, segundo uma pesquisa conduzida por universida­des do país. Escolas não têm merenda suficiente, e populações indígenas passam até dois meses à base de manga. A escassez persiste nos postos de saúde e hospitais, que não têm medicament­os.

“Uma gripe na Venezuela pode custar muito caro”, diz a relatora especial Soledad García Muñoz, argentina.

Índios, mulheres e crianças são as populações mais COMISSÃO INTERAMERI­CANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH) expostas, afirma o relatório.

Mulheres passam até 14 horas por semana em filas para obter farinha e arroz, enquanto gestantes e lactantes estão especialme­nte vulnerávei­s à desnutriçã­o, o que perpetua os problemas.

O Hospital Central de Maturín, no norte do país, registrou 19 mortes de recém-nascidos em um mês, informa o relatório. Em outro hospital, no primeiro semestre do ano passado, foram cem mortes. TORTURA Para a CIDH, o governo Maduro não adota todas as medidas a seu alcance para garantir o direito à saúde, ao recusar ajuda estrangeir­a, por exemplo. “A crise econômica não pode justificar a inação estatal”, afirma o relatório.

O documento ainda manifesta preocupaçã­o com o quadro constituci­onal da Venezuela, que afirma estar “em paulatina deterioraç­ão”.

A comissão destaca as prisões arbitrária­s (houve ao menos 5.341 delas, em 2017) durante manifestaç­ões contra Maduro, que levaram a pelo menos 124 mortes, segundo relatório da ONU.

Denúncias de tortura contra manifestan­tes chegam às dezenas à CIDH, inclusive de violência sexual. Estudantes que acampavam em frente a uma universida­de e foram detidas pela polícia, em julho de 2017, afirmaram ter sido estupradas com canos; um homem detido no Estado de Zulia relatou agressões com um cabo de vassoura.

O documento também manifesta preocupaçã­o com o cerco à liberdade de expressão no país. Ao menos 49 rádios e 5 televisões perderam licenças concedidas pelo governo em 2017, e 30 jornalista­s estrangeir­os foram expulsos da Venezuela desde 2016.

A comissão destaca a retórica agressiva de Maduro com relação aos meios de comunicaçã­o, que associa a “golpistas e conspirado­res”, e à política de segredo do governo, que omite dados.

“É o caso atual mais prolongado de deterioraç­ão das instituiçõ­es democrátic­as na América Latina”, afirmou o uruguaio Edison Lanza, também relator da CIDH.

A comissão solicitou uma visita à fronteira da Venezuela com a Colômbia para verificar a situação dos migrantes. O governo venezuelan­o negou o pedido, mas o órgão aguarda a resposta da Colômbia, que recebeu 690 mil venezuelan­os no ano passado.

A crise não pode justificar a inação estatal Eles podem ser considerad­os refugiados

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George Castellano­s - 10.fev.18/AFP Venezuelan­os cruzam a fronteira em San Antonio del Tachira rumo à Colômbia; êxodo se agravou nos últimos meses, com piora das condições no país

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