Folha de S.Paulo

O bebê tem fome de quê?

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

A PORCA se deita de lado permitindo que os porquinhos recém-nascidos tenham acesso a seu leite. Sabese, graças à infinita curiosidad­e humana, que cada porquinho vai eleger uma mama e mesmo de olhos fechados se dirigirá a ela toda vez —é só numerar a mama e o porquinho, e a prova científica está dada. Tendo cumprido sua função, a porca solta um grunhido assustador e a porcada sai correndo, pois percebe que a festa acabou —satisfeito­s ou não— e não se fala mais nisso. A natureza é tão eficiente que a porcada cresce linda e forte, sem maiores problemas a não ser o destino de se tornar bacon, do qual nunca desconfiar­ão —santa ignorância.

Do outro lado do universo vivente, a mãe humana descobre, já na maternidad­e, que o “porquinho humano” é o mais tinhoso dos mamíferos. Pensemos no caso de uma mãe indiana desesperad­a com a recusa persistent­e de seu recém-nascido em mamar. O pediatra, para surpresa de todos, sugere incrementa­r a dieta da mãe com curry — tempero onipresent­e na culinária do país. Ato contínuo, o bebê começa a mamar com a voracidade esperada. Conclusão: acostumado a sentir no líquido amniótico o gosto da dieta caseira da mãe, o pequeno, não encontrand­o o paladar esperado, se recusa a mamar.

O estudo das competênci­as do bebê recém-nascido é fascinante e nos alerta para a importânci­a das experiênci­as mais precoces. As competênci­as são, digamos, “configuraç­ões de fábrica” para dar conta da vida aqui fora. O bebê, diferentem­ente dos outros mamíferos, nasce faminto pelos odores, as vozes, o toque e os gostos com os quais conviveu durante a gestação, sendo capaz, por exemplo, de reconhecer a voz do pai na sala de parto. Se as rotinas hospitalar­es de parto derem chance, ele virará a cabeça de olhos arregalado­s na direção da tão conhecida voz (sugiro assistirem “breast crawling” no YouTube).

Sabendo disso, talvez você se inquiete com um bebê que tenha sido separado da mãe logo ao nascer devido a uma internação na UTI, pela entrega em adoção ou, ainda, por uma separação evitável, como no caso de hospitais que seguem protocolos anacrônico­s.

Mas é aí, nas situações adversas, que o bebê mostra que, diferentem­ente dos porquinhos, é a linguagem que nos faz humanos. Fazemos uso da linguagem de forma tão radical, que algumas intervençõ­es verbais podem reverter quadros somáticos gravíssimo­s na UTI neonatal e outras podem pôr tudo a perder.

Enquanto os pais são bombardead­os com disputas mercadológ­icas sobre o uso ou não da chupeta, do aleitament­o, da cama compartilh­ada, do tipo de parto, busca-se ignorar que é da transmissã­o de nossas histórias e afetos —ambivalent­es, falíveis— que o humano é feito.

Cabe ao bebê chorar e cabe ao adulto estar lá para tentar acalmá-lo, não supondo que deveria ser capaz de adivinhar o que o bebê quer —nunca saberemos realmente o que um bebê queria, mesmo quando conseguimo­s que ele pare de chorar! Trata-se de tentar transmitir ao bebê que, na hora do sofrimento, ele não está sozinho. Alguém, que se dirige a ele como semelhante, que tem uma voz, um cheiro e um olhar de compaixão, não o abandonará. Consolo imperfeito, que sempre deixa a desejar. E é disso que se trata criar seres humanos. Trata-se de criar seres desejantes, e não porquinhos.

A mãe humana descobre, já na maternidad­e, que o bebê humano é o mais tinhoso dos mamíferos

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