Folha de S.Paulo

Carnaval como conhecemos está morto, viva o Carnaval

- ANDRÉ FORASTIERI

mentários de outros moradores no elevador. E recebeu uma advertênci­a.

A carta, entregue aos condôminos, aconselha a “evitar constrangi­mentos, evite circular com trajes de banho e pijamas ou sem camisa”.

Há edifícios como o Viadutos, na Bela Vista, que alertam o folião antes de aplicar multa. O revés, porém, veio sem aviso para o designer Alexandre Ferraz, 34, que mora na alameda Lorena.

Ele narra ter chegado em casa às 22h do feriado de aniversári­o de São Paulo, dia 25 de janeiro. Voltava do show de Anitta, no centro, com uma saia de bailarina rosa sobre os shorts e mais nada. “Perdi a camiseta em algum momento, porque fiquei o dia todo sem mesmo, pulando.”

O porteiro avisou que ele não poderia passar nas áreas comuns descamisad­o.

Perguntou se ele não queria pedir para um vizinho descer com toalha para ele se enrolar. Ferraz insistiu e assumiu o risco. Dois dias depois, lá estava a multa, no valor de meio condomínio (R$ 480).

“Não tem o que apelar. Regra é regra. Eu devia é ter subido meu ‘tutu’ [a saia] e improvisad­o uma camiseta.”

O advogado Carlos Lima, especializ­ado em questões condominia­is, confirma que a regra vigente é a acordada na convenção do prédio.

“É questão de bom senso, dificilmen­te um juiz daria ganho de causa para alguém que andou sem camisa na área comum, se essa pessoa resolvesse ir para a Justiça.”

Voltando à discussão entre o homem de sunga e o segurança no transporte público.

O Metrô afirma em nota que proíbe “a entrada ou permanênci­a em suas dependênci­as de pessoas em traje de banho ou sem camisa”.

Depois de uns minutos de bate-boca, o homem de sunga dourada desistiu e voltou para o bloco.

Phillippe Watanabe

FOLHA

O Carnaval morreu. O Carnaval como sempre o conhecemos: sem respeito e sem vergonha, muito carnal e um pouco canalha. Melhor não cantar “vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval”. Podes ser acusado de apologia do estupro.

Se depender de uma certa militância, Colombina vai ter que declarar em três vias seu amor ao Arlequim, assinatura reconhecid­a em cartório, antes de qualquer beijinho. As definições de assédio e ofensa foram tão alargadas que cabe qualquer coisa dentro dessas palavras.

Em 2017, blocos politicame­nte corretos vetaram “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão, por ser “discurso de ódio”. Lamartine Babo foi linchado nas redes sociais por escrever “Mas como a cor não pega, mulata / mulata quero seu amor”.

Mas se pela razão o Carnaval deveria definhar, pela paixão viceja. O número de foliões aumenta. São Paulo, ex-túmulo do samba, hoje tem o maior Carnaval do Brasil. Em 2017 desfilaram 391 blocos. Em 2018, 491.

O Carnaval não faz sentido há quase 30 séculos. Os povos da Antiguidad­e marcavam a aproximaçã­o da primavera, ainda a um mês de distância, com uma festança para liquidar suas últimas comidas gordas, gostosas. Tinham pela frente mais um mês de regime forçado. Mas celebravam a sobrevivên­cia a mais um inverno. É a origem do Carnaval e da Quaresma.

Esses bárbaros poderiam ter racionado suas iguarias para consumi-las devagarinh­o, durante esse último mês difícil. Preferiam a glutonice, irracional, irresistív­el. Seguimos bárbaros. Pelo menos alguns dias por ano.

Desde aquela época o Carnaval sobrevive a muitos chatos querendo acabar com a festa, incluindo 2.000 anos de repressão religiosa. Resistirá com facilidade ao puritanism­o “de esquerda”. Isso é só o outro lado do conservado­rismo carola e brucutu. Que é bem mais poderoso, mas já foi devidament­e derrotado pelas hostes de Momo.

Sim, há que enterrar velhas práticas e fazer sacrifício­s. É o preço de um mundo mais civilizado. Mas civilizaçã­o é repressão, nos ensinou Freud, e é o exato contrário do Carnaval, eterna festa da ambiguidad­e e do desregrame­nto. As ruas sugerem que quanto mais rancoroso o discurso autoritári­o das patrulhas, mais viva a reação, e animação, dos foliões.

Merecemos. A Quarta-Feira de Cinzas é bem mais triste no Brasil que no hemisfério norte. Para a gente, o Carnaval não é o fim da estação das dificuldad­es, mas o começo de fato de um novo ano, com suas novas obrigações e chateações. É o último suspiro da estação solar, temporada de fartura e prazer.

Consideran­do o que foi 2017 e o que 2018 nos reserva, festejemos, como faziam nossos antepassad­os na Roma clássica, quando o Carnaval se chamava Liberalia. Celebremos, neste Carnaval e sempre, seu patrono, o deus do vinho, Liber. E seu presente para nós: a zoeira, a esbórnia —a Liberdade.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil