Folha de S.Paulo

Extra para servidor custa 1/4 do Bolsa Família

- BRUNO CARAZZA

ESPECIAL PARA A FOLHA

A recente polêmica envolvendo o auxílio-moradia no Judiciário demanda um olhar mais abrangente sobre o processo, que gera distorções salariais no serviço público.

Quando o Congresso estabelece­u que o vencimento máximo no setor público seria o subsídio dos ministros do STF, a intenção era coibir abusos. No entanto, o que era para ser teto passou a ser encarado por diversas corporaçõe­s como uma meta.

Em Brasília, os salários e benefícios são tanto maiores quanto o poder de pressão das categorias.

Foi assim que juízes estaduais (e, por simetria, membros do Ministério Público e de Tribunais de Contas) conseguira­m garantir na Constituiç­ão um vínculo automático (90,25%) de seus salários com os dos ministros do Supremo. E servidores de carreiras da elite dos Poderes Executivo e Legislativ­o conseguira­m reajustes tão superiores à inflação que levaram seus ganhos a tangenciar o teto.

Com o agravament­o da crise fiscal, o governo tem segurado reajustes para os ministros do STF buscando conter o efeito cascata sobre todo o funcionali­smo. Nesse contexto, o auxílio-moradia surgiu como uma forma de autoconces­são de um aumento salarial disfarçado, burlando o teto.

O problema do auxílio-moradia, contudo, não é exclusivid­ade do Judiciário. O Executivo também gasta uma parcela expressiva com esse benefício para ministros, altos dirigentes, militares e diplomatas. E para agravar a situação, a estratégia de criar pendurical­hos salariais tem se espalhado por outras carreiras poderosas em Brasília.

Em 2016, os membros da Advocacia-Geral da União conseguira­m em lei o direito a receber honorários de sucumbênci­a pelas causas ganhas pela União (pagos pela parte perdedora).

De acordo com dados do Portal da Transparên­cia, de fevereiro a novembro de 2017 essa rubrica engordou os contracheq­ues em R$ 3.800 mensais, em média.

Já em 2017 foi a vez de os auditores e analistas da Receita Federal garantirem, também em lei, um bônus de eficiência e produtivid­ade. Enquanto o governo não regulament­a a forma de cálculo desse extra salarial, os servidores do órgão vêm recebendo entre R$ 1.800 e R$ 3.000 por mês.

Em face da grave crise fiscal, o governo tentou suspender o reajuste linear de 5% sobre as principais carreiras do Executivo concedidos por Michel Temer em 2016. Uma liminar do ministro Ricardo Lewandowsk­i, contudo, garantiu um aumento superior à inflação para esses servidores, que já ganham entre R$ 20 mil e R$ 30 mil mensais.

Uma rápida conta de guardanapo de bar oferece uma medida do grau dessas distorções. O Brasil tem atualmente 18.011 juízes e 13.087 membros do Ministério Público. Consideran­do o valor de R$ 4.377,73 mensais do auxílio-moradia, temos R$ 1,63 bilhão por ano. Somando-se os R$ 380 milhões que o Poder Executivo gastou em 2017, a fatura passa de R$ 2 bilhões.

Somam-se a eles mais R$ 580 milhões anuais pelos honorários de sucumbênci­a da AGU e outros R$ 2 bilhões previstos para o bônus dos fiscais da Receita. Já o reajuste salarial para as carreiras da elite do Executivo, por sua vez, ficará em torno de R$ 2,6 bilhões em 2018.

No conjunto, esses pendurical­hos e reajustes para carreiras privilegia­das do setor público passam de R$ 7,2 bilhões por ano.

Para fins de comparação, o orçamento do Bolsa Família em 2018 é de R$ 28,7 bilhões. Ou seja, apenas com esses agrados a poucos milhares de servidores que já se encontram no topo dos 2% ou 3% mais ricos da pirâmide de renda brasileira, a União e os Estados despendem em torno de 25% do maior programa social do país, que atende quase 14 milhões de famílias miseráveis.

A culpa da crise fiscal não é nem de longe exclusiva dos servidores públicos —as centenas de bilhões dos incentivos fiscais concedidos na última década para grandes empresas têm uma responsabi­lidade muito maior.

Mas é inegável que também precisamos de uma completa revisão da política remunerató­ria no serviço público, visando erradicar toda forma de pendurical­hos e pagamentos indevidos num país tão desigual. BRUNO CARAZZA

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