Folha de S.Paulo

ANÁLISE Após nove anos de governo, presidente sai menor do que entrou, e país também

- MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA

Ao declinar a convocação oficial de seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano (CNA), para deixar a Presidênci­a, Jacob Zuma optou por sair pela porta pequena. Sem outro recurso, a ANC ameaçou submeter um voto de desconfian­ça no Parlamento para destitui-lo.

Na noite desta quarta (14), ele antecipou o processo e anunciou a própria demissão.

Zuma chegou ao poder em 2009 com a promessa de reaproxima­r o governo das bases populares, desmobiliz­a- das pela gestão competente mas excessivam­ente técnica de Thabo Mbeki, o sucessor designado pelo fundador da África do Sul pós-apartheid, Nelson Mandela, em 1999.

Mas o Zuma exuberante e popular tinha outra faceta: a de exímio homem de aparelho formado nos centros clandestin­os do CNA, onde chefiou serviços de espionagem nos tempos da guerrilha.

Zuma desenvolve­u um estilo de governar à sua imagem, baseado em manobras e sabotagens, e logo se apropriou do Estado e do partido.

A partir do seu segundo mandato (2014), as esferas publicas e privadas do poder se tornaram indissociá­veis.

Em troca de todo tipo de agrado, Zuma abriu as portas do Estado a uma família de empresário­s. Num caso clássico de captura do Estado, os Gupta passaram a exercer influência ilimitada no governo, indicando ministros, obtendo contratos sem licitação e alterando legislação essencial para seus negócios.

Essa súbita e profunda involução de uma democracia tida como exemplar contribuiu para o apagar da África do Sul no nível continenta­l.

O país perdeu o lugar de primeira potencia econômi- ca para a Nigéria, viu Ruanda e Etiópia se tornarem as novas meninas dos olhos do mercado, e teve que aprender a conviver com as ambições regionais do petro-Estado de Angola. Em menos de uma década, a África do Sul foi de protagonis­ta do renascimen­to africano a mais um ator promissor e problemáti­co.

Concluída a patética despedida de Zuma —que, quase como um símbolo, tem como última exigência que o Estado continue a pagar os seus advogados após deixar o poder— seu sucessor, Cyril Ramaphosa, terá a tarefa colossal de redignific­ar o governo até as eleições de 2019 sob pena de ver o CNA perder a maioria histórica no Parlamento.

Eleito líder da ANC em dezembro de 2017, Ramaphosa personific­a a evolução do CNA desde Mandela.

Fundador do braço sindical do partido, a poderosa Cosatu, e principal negociador do CNA na transição do apartheid, Ramaphosa também é um empresário milionário, que atuou, entre outros cargos, como dirigente da empresa de mineração Lonmin, implicada no mais sinistro episódio da era pós-apartheid: o massacre de 17 grevistas na mina de Marikana.

Pela sua capacidade de navegar no partido e no mercado, Ramaphosa é visto como a liderança mais apta a reabilitar o CNA e o governo.

À semelhança de Angola, Moçambique e Zimbábue, a longa luta pela democratiz­ação na África do Sul continua na difícil transição dos movimentos de libertação a partidos na era pós-colonial.

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