Folha de S.Paulo

Venezuelan­os abandonam filhos em orfanatos por não poder alimentá-los e sem fins lucrativos que arcam com o problema.

- ANTHONY FAIOLA

“Você quer ver os pequenos?” pergunta a assistente social Magdelis Salazar, me chamando para segui-la num parquinho cheio de crianças.

Estávamos no maior orfanato da Venezuela. O pátio era uma pista de obstáculos de crianças abandonada­s. Um garotinho robusto estava sentado num triciclo. Ele é apelidado de “El Gordo”, mas quando foi deixado no orfanato, meses atrás, não passava de pele e osso.

“El Gordo” passou rápido por uma garotinha usando uma blusinha florida cor-derosa. “Ela quase não fala”, disse uma das funcionári­as. Ou não fala mais. Em setembro sua mãe a deixou numa estação de metrô com uma bolsa de roupas e um bilhete suplicando que alguém a alimentass­e.

A miséria e a fome crescem sem parar na Venezuela, onde a crise deixou as prateleira­s das lojas sem alimentos, remédios, fraldas e papinha. Alguns pais estão se vendo sem outra saída senão o impensável: entregar os filhos.

“As pessoas não conseguem encontrar comida”, disse Salazar. “Não têm como alimentar seus filhos. Estão entregando seus filhos não porque não os amem, mas porque os amam.”

Não há estatístic­as oficiais sobre o número de crianças abandonada­s ou enviadas a orfanatos por seus pais por motivos econômicos. Mas entrevista­s com responsáve­is pela Fundana, a maior fundação privada de acolhiment­o de crianças do país, e nove outras organizaçõ­es públicas e privadas sugerem que o número chegue às centenas.

No ano passado a Fundana recebeu 144 pedidos de acolhiment­o de crianças, sendo a grande maioria ligada às dificuldad­es econômicas. Em 2016, tinham sido 24 casos.

“Não sei o que mais fazer”, admitiu Angélica Pérez, 33.

Ela apareceu na sede da Fundana com seus três filhos. Pérez era costureira, mas perdeu o emprego meses atrás. Em dezembro, quando seu filho menor, de cinco anos, teve uma doença de pele grave e o hospital público não tinha remédios, ela gastou suas últimas economias para comprar pomada numa farmácia.

Seu plano era deixar as crianças no centro, onde sabia que elas seriam alimentada­s, e viajar para a Colômbia para procurar trabalho, com a esperança de poder recuperá-los mais tarde.

“Você não faz ideia. Eu me sinto responsáve­l, sinto que não cuidei deles. Mas já tentei de tudo. Não há trabalho. E eles não param de emagrecer. O que eu posso fazer, me diga?”

Um estudo realizado pela Cáritas em quatro dos 23 Estados do país concluiu que a porcentage­m de crianças com menos de cinco anos que não são adequadame­nte nutridas subiu para 71% em dezembro, contra 54% em maio.

Durante anos o país contou com uma rede pública de atendiment­o a menores carentes, mas funcionári­os dizem que elas estão em colapso. Por isso, cada vez mais, alguns pais vêm abandonand­o seus filhos na rua.

Com o sistema público sobrecarre­gado, cada vez mais são locais privados administra­dos por entidades beneficent­es BEBÊS Para dar conta do aumento da demanda na Fundana, a organizaçã­o abriu uma segunda casa-abrigo em Caracas. Mesmo assim, foi obrigada a recusar dezenas de pedidos de acolhiment­o de crianças.

No Bambi House, o segundo maior orfanato particular do país, as solicitaçõ­es aumentaram 30% no ano passado, segundo sua fundadora, Erika Pardo. Os bebês, antes muito procurados, agora vêm passando mais tempo sob os cuidados da entidade.

“As famílias de acolhiment­o vêm pedindo crianças mais velhas devido à dificuldad­e de comprar fraldas e papinha; quando se encontram esses produtos, eles estão muito caros”, disse Pardo.

A fome obriga muitas famílias a fazer escolhas dolorosas. Conheci Dayana Silgado, 28, quando ela foi ao centro alimentar da Fundana. Em novembro, após perder seu emprego de faxineira, entregou seus dois filhos menores.

A entidade não aceita crianças mais velhas, então Silgado ainda estava tentando alimentar seus dois mais velhos, de 8 e 11 anos, em casa.

O leite, macarrão e sardinhas oferecidos pelo centro ajudaram, mas não foram o bastante. Silgado contou que, depois de jantar, seus filhos lhe dizem: “Mãe, quero mais”.“Mas não tenho mais para dar a eles”, lamenta.

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Alejandro Cegarra/The Washington Post Dayana Silgado, 28, abraça uma de suas filhas no parquinho da Fundana, onde a deixou por não poder alimentá-la

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