Folha de S.Paulo

Não somos computador­es

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A DISTINÇÃO entre os dois tipos de memória visual que Vladimir Nabokov —ou antes Humbert Humbert, o narrador— faz em “Lolita” é uma daquelas verdades sem nome que a boa ficção nos permite acessar.

Diz Humbert, falando de um amor da infância, que num tipo de recordação “recriamos com habilidade uma imagem no laboratóri­o da mente (e então vejo Annabel segundo categorias gerais, tais como: ‘pele cor de mel’, ‘braços delgados’, ‘cabelos castanhos cortados bem curtos’, ‘cílios longos’, ‘boca larga e radiante’)...”

O segundo tipo é de natureza diversa. Permite ao sujeito convocar uma imagem inteiriça, projetando “sobre o escuro interior das pálpebras a réplica objetiva e absolutame­nte fiel de um rosto amado, um pequeno fantasma em cores naturais (e é assim que vejo Lolita)”.

A tradução que cito é a clássica, de Jorio Dauster, e Humbert, claro, nada a ver com isso.

No caso de Annabel, a lembrança é construída racionalme­nte, traço por traço, o que a torna tão sólida quanto insatisfat­ória. No de Lolita, ativada pela emoção, a imagem vem pronta e deslumbran­te como um relâmpago, mas é inefável e fugidia.

Nem Annabel nem Lolita são arquivos guardados no cérebro de Humbert Humbert. Qualquer smartphone de camelô humilha, no trabalho de memorizar e reproduzir imagens, um intelectua­l capaz de escrever mais sofisticad­a da história.

O trecho de Nabokov me veio à memória ao ler um ensaio do psicólogo americano Robert Epstein na revista digital “Aeon”, sob o provocador título “O cérebro vazio”.

Trata-se de um libelo contra o modo dominante desde meados do século passado, tanto na ciência quanto no senso comum, de compreende­r nossa inteligênc­ia: o paralelo com o computador.

“Por mais que tentem, neurologis­tas e psicólogos cognitivos jamais encontrarã­o uma cópia da Quinta de Beethoven no cérebro —nem cópias de palavras, imagens, regras

E completa: “O cérebro humano não é realmente vazio, claro. Mas não contém a maioria das coisas que as pessoas julgam conter —nem mesmo coisas simples como ‘memórias’.”

Sua relação com o cérebro eletrônico, sustenta o autor, não passa de metáfora. Já tivemos outras, em momentos diversos da história, como a hidráulica, a mecânica e a elétrica.

A verdade é que sabemos pouquíssim­o sobre como a mente funciona, e cada metáfora acaba dando lugar a uma mais condizente com a tecnologia da época. O cérebro como unidade de processame­nto de informação é a da vez.

Metáforas são excelentes quando sabemos que são metáforas. O problema, segundo o psicólogo, reside no fato de quase toda a pesquisa científica das últimas décadas tratar como real uma baixar memórias diretament­e do cérebro para um suporte digital, por exemplo, abrindo caminho para uma forma de imortalida­de, é levada a sério por muita gente —inclusive um cabeção como Stephen Hawking.

Epstein chama isso de tolice. Acha que, além de perder tempo, estamos jogando dinheiro fora. Suspeito que Nabokov lhe daria razão.

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