Folha de S.Paulo

NÓS, OS TINCOÃS

- TONY GOES

FOLHA

É improvável que muita gente saiba hoje quem foram Os Tincoãs. Mas o grupo baiano chegou a frequentar as paradas de sucesso na década de 1970.

Em 1981, João Gilberto gravou o refrão da música “Cordeiro de Nanã” no disco “Brasil”, feito ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Em 2004 e 2005, “Cordeiro de Nanã” voltou a ser ouvida, na voz de Thalma de Freitas, na novela “Senhora do Destino” —embora não tenha sido incluída no CD da trilha sonora da atração.

Tudo isso, porém, tem pouco valor se comparado ao lugar original e relevante que os Tincoãs ocupam na trajetória da música brasileira.

Nenhum grupo antes deles tinha gravado com tamanho apuro melódico cantos derivados do candomblé. E não eram meros registros, mas recriações, com letras que até tomavam liberdades em relação à mitologia dos orixás. SEM EXOTISMO Essa história está contada em “Nós, Os Tincoãs”, livro com vários textos —de autoria de Capinan, Martinho da Vila, Carlinhos Brown, jornalista­s e estudiosos— selecionad­os por Gringo Cardia, também responsáve­l pela direção de arte.

A realização é da Sanzala, produtora que tem Mateus Aleluia, um dos Tincoãs, entre os donos.

“De repente estão acordando, principalm­ente pessoas mais jovens, para um trabalho que tinha ficado no pas- sado”, diz Aleluia, de 74 anos.

“A música de origem africana ainda é tratada com certo exotismo, como se esperassem dela algo frenético, para entrar em transe anímico. Ou fosse apenas objeto de pesquisa. Nosso trabalho tinha beleza artística, com relevo melódico e harmônico e ritmo sincopado.”

O livro traz encartados três CDs com os principais discos dos Tincoãs, de 1973, 1975 e 1977. Eram álbuns que só existiam em LPs, cobiçados por DJs e colecionad­ores.

No Mercado Livre, são oferecidos por até R$ 890 cada um. No sebo Patuá Discos, que está vendendo o livro, saem por, no máximo, R$ 400. Mas é raro que haja algum disponível, pois pouca gente se desfaz de seus exemplares. DOS BOLEROS A ANGOLA O primeiro disco dos Tincoãs, de 1961, tem como título “Meu Último Bolero”.

O trio formado por Dadinho, Heraldo e Erivaldo se inspirava em grupos como o Trio Irakitan. O nome “tincoã”, de pássaro, foi escolhido por sorteio.

Em 1963, com Aleluia no lugar de Erivaldo e tocando atabaque, o grupo começou a traçar um novo perfil.

Todos tinham nascido em Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano que recebeu cerca de 40 mil africanos escravizad­os nos séculos 17 e 18, quando eram intensas a produção de cana-de-açúcar e a mineração de ouro.

A religiosid­ade e a musicalida­de de origem africana embasaram as canções dos Tincoãs, lançadas nacionalme­nte em 1973 no disco que levava o nome do grupo. “Deixa a Gira Girá” —regravada pela banda paulistana Bixiga 70 em 2013— tocou nas rádios.

Dois anos depois, com Morais no lugar de Heraldo, surgiu “O Africanto dos Tincoãs”. E “Promessa ao Gantois” parou no “Globo de Ouro”, o programa da TV Globo com os sucessos do mês. E, em 1977, com Badu em vez de Morais, o LP “Os Tincoãs” lançou “Cordeiro de Nanã”. ESTRANHEZA Os três discos foram produzidos pelo radialsta Adelzon Alves, figura fundamenta­l para o grupo. Impression­aram João Donato e os maestros Hans-Joachim Koellreute­r e Radamés Gnattali. Recentemen­te, fascinaram Criolo e Emicida, entre outros.

“Os Tincoãs foram a infantaria na afirmação da música negra no país”, diz o baiano Letieres Leite, maestro da Orquestra Rumpilezz, que vem reelaboran­do os toques dos tambores do candomblé.

“O pensamento brasileiro ainda acha que a cultura negra não tem rigor, não segue padrões. Ela não segue os padrões da cultura europeia, mas tem os seus. Os Tincoãs tinham uma elaboração que causava estranheza. A geração mais nova está assimiland­o isso.”

Autores de quase todas as músicas, Mateus Aleluia e Dadinho se mudaram em 1983 para Angola, que haviam conhecido acompanhan­do Martinho da Vila em shows. Badu, cantor e percussion­ista, foi para a Espanha. Deixaram pronto um disco ainda inédito: “Canto Coral Afro-brasileiro”.

Dadinho, de violão e voz peculiares (com destaque para os falsetes), não voltou mais. Morreu em 2000.

Aleluia, também violonista além de percussion­ista e dono de voz grave, regressou em 2002. Vive hoje em Cachoreira e tem desenvolvi­do trabalho solo. AUTORES Vários EDITORA Sanzala/Natura Musical QUANTO de R$ 100 a R$ 140, segundo o local da compra; Patuá Discos (11) 2306-1647; Locomotiva Discos, (11) 32554963; e encomendas pelo e-mail nosostinco­as@gmail.com

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