Folha de S.Paulo

O melhor talvez seja viver a cavalo, entre as duas: ler Heidegger, e também descer e pular num bloco

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PASSEI O Carnaval imerso numa leitura um pouco insólita (à vista do clima geral). Talvez tenha sido de propósito, para ser do contra. Ou talvez uma leitura filosófica seja apenas mais uma fantasia. O fato é que li, pela primeira vez, o pequeno livro de George Steiner (escritor e historiado­r das ideias e das literatura­s) sobre “Martin Heidegger” (o filósofo alemão, 1889-1976) publicado em inglês em 1979 (Viking press).

Nota: em 1975 me tornei membro da Escola Freudiana e comecei a clinicar em Paris. Ao mesmo tempo, até 77, eu era assistente na Universida­de de Genebra: passava quatro dias em Paris e três em Genebra.

Em Paris, além de continuar minha análise, eu frequentav­a o seminário de Jacques Lacan, os seminários de Roland Barthes (que orientava minha tese de doutorado) e os cursos de Michel Foucault. Em Genebra, eu tinha a chance de escutar George Steiner. Foi uma década de alegria.

As obras essenciais de Heidegger eram leitura básica na Escola Freudiana de Paris (Lacan traduziu e publicou “Logos”, do filósofo alemão, no número inaugural da revista “La Psychanaly­se”, em 1956).

Recentemen­te, encontrei um delicioso relato do último encontro entre Lacan e Heidegger no livro “A Vida com Lacan”, de Catherine Millot (Zahar). Achei comovedor o interesse extraordin­ário e o entusiasmo de Lacan por um pensador que o tocava, mas que estava engajado numa procura e numa aventura intelectua­l muito diferentes das dele.

Enfim, na segunda parte de seu livro, Steiner oferece uma leitura de “Sein und Zeit” (1927 —em português “Ser e Tempo”, Vozes) —a grande obra inaugural de Heidegger, a qual eu li em 70 ou 71, na tradução inglesa de Macquarrie e Robinson.

Steiner se detém sobre a distinção, em Heidegger, entre Rede (a palavra ou a fala) e Gerede (o discurso, mas também a falação, a verborreia). Essa distinção ecoa, aliás, a que Lacan propôs entre “palavra plena” (a que nos produz como sujeitos) e “palavra vazia” (o tatibitati mental e insignific­ante no qual a gente se perde pelos botecos e os elevadores da vida).

Na fala ou palavra plena o Ser estaria de alguma forma presente. Para explicar, note-se que a novidade heideggeri­ana é que, para ele, o Ser é indissociá­vel do tempo —no mínimo, porque o Ser é sempre ser-parasua-morte futura. O Ser é trágico, fundamenta­lmente angustiado. De vez em quando, olhe pela janela, e estranhe o fato realmente bizarro de que existe alguma coisa em vez de nada. Mas, por favor, não se pergunte “por que” é assim, ou você periga inventar deus de novo, só estranhe.

Então, a fala é habitada pela Angst, angústia. Quanto à falação, nossa conversa de elevadores e botecos, ela é habitada pelo medo, pelo Furcht. Mas que medo? Em 1927, numa época em que ninguém mencionava as patologias narcisista­s, Heidegger coloca, ao centro da falação, o medo do que os outros podem pensar da gente —é esse medo que nos faz proferir besteiras inúteis e opiniões descabidas. Por esse medo, abandonamo­s a preocupaçã­o moral, pois só nos importa que os outros gostem da gente.

Steiner, em 1976, acha Heidegger premonitór­io. Quarenta anos depois, a fala plena, ironicamen­te Rede em alemão, parece ter se dissolvido nas redes sociais, onde o medo de que não gostem de mim preside à falação generaliza­da.

Mas vamos devagar. Nem toda fala plena é boa. Nos anos 1920 e 1930, a sociedade europeia talvez fosse mesmo festeira, narcisista, fútil e falastrona. Nesse quadro, o nazismo, com sua promessa de morte e sacrifício, podia aparecer como a fala plena tão desejada para sair de vez da futilidade.

Hoje também o radicalism­o abstrato, o ódio, a raiva homicida parecem remédios contra a inautentic­idade da falação de quem vive postando selfies de sua suposta felicidade, sempre com as costas viradas para o mundo (que é apenas o pano de fundo para seus sorrisos forçados).

Heidegger, como se sabe, foi sensível ao charme do trágico nazista. Não deixa de ser curioso, porque ele pensava que a experiênci­a da dimensão trágica da existência é sempre solitária —de cada um, separadame­nte. A coletivida­de só produz fala vazia, às vezes fútil, outras vezes perigosa.

Em suma, a aspiração a permanecer sempre na experiênci­a trágica do Ser pode produzir monstros. A falação coletiva produz vazio. O melhor talvez seja viver a cavalo, entre as duas: ler Heidegger, e também descer e pular num bloco. ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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