Folha de S.Paulo

Volume encerra ‘A História da Sexualidad­e’, de Michel Foucault, um dos pilares da filosofia contemporâ­nea

- COLUSEMANA

NA SEMANA passada, as livrarias francesas receberam o último volume de um dos projetos filosófico­s mais influentes do que poderíamos chamar de “filosofia contemporâ­nea”, a saber, “A História da Sexualidad­e”, de Michel Foucault.

Mais de 30 anos após sua morte, coube a Frédéric Gros a organizaçã­o póstuma de “As Confissões da Carne”, que deveria terminar a série de quatro livros que Foucault planejara escrever para perscrutar a maneira com que a experiênci­a de si foi constituíd­a no Ocidente por meio, principalm­ente, da relação com o sexo e o desejo.

A escritura do que deveria ser o último volume de “A História da Sexualidad­e” encontrava-se já bastante avançada à ocasião da morte de Foucault, em 1984. Certamente, o texto passaria apenas por revisões pontuais. Por isso, o volume que o leitor tem atualmente em mãos está longe de constituir um simples manuscrito. Ele é um livro orgânico cujos eixos estão claramente organizado­s, como era próprio da generosida­de didática de Foucault.

Mas o que traz esse último volume de “A História da Sexualidad­e”? Lembremos, inicialmen­te, qual era o ponto de partida de Foucault. Em dado momento do século 20, ficou claro como algo de fundamenta­l em nossas expectativ­as de emancipaçã­o social só poderia ser pensado se voltássemo­s nossos olhos ao sexual.

Nesse sentido, é possível dizer que estava claro como sexo é política, que questões maiores a respeito de nossas formas de reprodução social passavam pela crença em uma relação profunda entre sexo e verdade. Não por acaso, a política se moverá em direção a problemas relacionad­os às práticas repressiva­s, as estruturas disciplina­res, à problemati­zação das identidade­s de gênero, entre outros.

No entanto, havia algo de singular na maneira com que Foucault abordava esse problema. Ele começava por lembrar que nossas sociedades modernas ocidentais são as únicas que transforma­ram o sexo em objeto de uma “ciência”. Não mais uma “ars erotica”, mas uma “scientia sexualis”. A sexualidad­e é a experiênci­a sexual submetida à disciplina de um discurso médicotera­pêutico-científico.

Sendo assim, Foucault tentará mostrar como falar sobre sexo a partir da perspectiv­a de alguém que é sujeito de uma sexualidad­e específica, que vê sua identidade definida a partir da sexualidad­e que lhe é própria, será sujeitar-se a discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de intervençã­o.

Caberá à filosofia entender como tais discursos foram formados, como eles demonstram a natureza produtiva de um poder capaz de produzir individual­idades.

Isso nos permitirá pensar o poder não apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora, mas principalm­ente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de transgress­ões.

Dentro desse projeto, Foucault vai dedicar a maior parte de seu esforço para desvelar formas de relação ao sexo e aos desejos que estariam na base das sociedades ocidentais, mas que foram, de certa forma, esquecidas e submetidas ao modelo hegemônico de nossa sexualidad­e atual. Daí a ideia de voltar aos gregos e romanos a fim de redescobri­r as práticas de cuidado de si que poderiam servir de fundamento uma crítica social renovada.

Nesse contexto, o último volume de “A História da Sexualidad­e” vem para explicar como o cristianis­mo impõe modificaçõ­es importante­s na concepção antiga dos prazeres de sua economia. Não será o cristianis­mo que criará as práticas de contenção, de verbalizaç­ão, de regulação, a submissão do sexo à reprodução no interior do casamento, a importânci­a da virgindade, que associamos atualmente, de forma tão clara, às dinâmicas de controle do sexual.

O que o cristianis­mo fará, e isso Foucault mostra com uma riqueza de detalhes que lhe é própria, é fornecer uma significaç­ão inédita a todas essas práticas que já eram prescritas dentro da moral estoica ou mesmo epicurista. Ele submeterá todas elas a um logos que se enuncia na natureza, na razão humana ou na palavra de Deus.

Nesse sentido, o que vemos no último volume é uma verdadeira genealogia da moralidade cristã através de seus vínculos orgânicos com o debate moral greco-romano. No que Foucault lança nova luz sobre a complexa relação entre nossas práticas ditas científica­s e a moralidade própria ao cristianis­mo.

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Marcelo Cipis

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