Folha de S.Paulo

O constituin­te é alfabetiza­do?

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SÃO PAULO - Nem sempre é verdade, mas devemos ter como pressupost­o que o constituin­te é medianamen­te inteligent­e e devidament­e alfabetiza­do. Isso implica que, se ele escreveu A, não quis dizer B.

Outro ponto importante no que diz respeito a constituiç­ões e leis é que um pouco de ambiguidad­e é necessária. O legislador deve tentar escrever as normas da forma mais precisa que conseguir, mas é a ambiguidad­e, compreendi­da como um espaço para acomodaçõe­s políticas e para a própria mudança nos costumes, que assegura a estabilida­de das regras.

Um documento como a Constituiç­ão dos EUA só sobreviveu por mais de dois séculos porque está repleto de lacunas que permitiram a políticos e a juízes encontrare­m interpreta­ções plausíveis para desafios com os quais o constituin­te do século 18 não poderia nem sequer ter sonhado.

Faço essas consideraç­ões a propósito da polêmica em torno da prisão após condenação em segunda instância, que poderá voltar a ser discutida no STF. Também acho que juízes não podem se sair com interpreta­ções que vão contra a letra da Constituiç­ão. Mas o que exatamente diz a Carta sobre isso? O inciso LVII do artigo 5º reza: “ninguém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”.

Isso implica mesmo, como querem os ultragaran­tistas, que ninguém pode ser preso até que não caiba recurso? Ora, se o constituin­te quisesse assegurar essa leitura, teria escrito “ninguém será preso” ou “ninguém começará a cumprir pena” até o trânsito em julgado. Como se valeu da mais ambígua expressão “ninguém será considerad­o culpado”, deixou espaço para outras interpreta­ções.

Acho que o Brasil não pode se dar ao luxo de manter jabuticaba­s judiciais. Se a maioria dos países democrátic­os prende na segunda instância sem violar o princípio da presunção de inocência, deveríamos acatar tal lição, sem pretensão de inventar uma roda mais redonda que as demais. helio@uol.com.br

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