Folha de S.Paulo

O manifesto ausente

- DEMÉTRIO MAGNOLI

HÁ 120 anos, em 15 de janeiro de 1898, o jornal “Le Temps” publicou uma petição por um novo julgamento do major Ferdinand Esterhazy, o verdadeiro culpado pelo ato de traição atribuído a Alfred Dreyfus. Além de Émile Zola, autor do “Eu acuso”, assinavam-na Anatole France, Émile Durkheim, Marcel Proust, Claude Monet e várias outras figuras da vida cultural francesa. Naquele dia, nascia a tradição moderna dos manifestos políticos de intelectua­is. A catástrofe humanitári­a na Venezuela pede, urgentemen­te, um manifesto de nossos intelectua­is de esquerda. Duvido, porém, que eles tenham a clareza moral necessária para escrevê-lo.

A petição de 1898 cumpriu relevante função pública, ao contrário da maioria dos manifestos que vieram depois, quase sempre consagrado­s a fins tolos, frívolos ou francament­e abjetos. Como regra, intelectua­is assinam declaraçõe­s políticas para servir a um partido ou causa sectária —e isso nos melhores casos, ou seja, quando não se trata mas principalm­ente aos primeiros, que cultivam mais tenazmente o hábito do abaixo-assinado. Hoje, porém, devo pedir justamente a eles que façam, uma vez na vida, o que fizeram Zola e cia: escrever para proteger valores preciosos.

Não conhecemos com precisão a dimensão da tragédia, pois o regime de Maduro proibiu o acesso à Venezuela da Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos, da OEA. Mas o relatório parcial que ela produziu descreve um cenário de desnutriçã­o infantil e carência generaliza­da de medicament­os básicos. Reportagem do “Washington já abandonam seus filhos pequenos em orfanatos. “As pessoas já não conseguem mais comida. Entregam seus filhos exatamente porque os amam”, explicou Magdelis Salazar, assistente social em orfanato de Caracas. Junto com o fluxo de refugiados rumo à Colômbia e ao Brasil, configura-se a paisagem típica de um país em guerra —com a diferença de que não há guerra. Chico, Marilena, Comparato, Dallari, Alencastro, Maria Victoria, Fornazieri, Singer —onde estão vocês? A aliança entre Caracas e Havana derivou do encontro do desvario dois meses de sua agonia em Cuba, Chávez organizou com os Castro a transição do poder para Maduro. O pacto desigual conferiu ao regime castrista o controle sobre os aparatos de segurança do Estado venezuelan­o, que é exercido por agentes dos órgãos de inteligênc­ia cubanos. A goma dos assessores cubanos imobiliza o chavismo crepuscula­r, prevenindo dissidênci­as e impedindo uma saída negociada. O manifesto ausente faz falta pois Havana guarda a chave de uma solução pacífica para a Venezuela.

Nessas circunstân­cias especiais, a palavra dos intelectua­is de esquerda pode exercer uma efetiva influência indireta. O persistent­e silêncio deles serve como cobertura do apoio dos partidos brasileiro­s simpatizan­tes do castrismo à ditadura de Maduro. pela esquerda latino-americana. Sob pressão do PT, do PSOL e do PC do B, Havana possivelme­nte se moveria, reproduzin­do o que fez no caso das Farc colombiana­s.

Nossos intelectua­is de esquerda especializ­aram-se em manifestos partidário­s ou destinados a causas mesquinhas, como pedir o escalpo de algum articulist­a inconvenie­nte. Que tal variar, em defesa dos direitos humanos dos venezuelan­os comuns? Dessa vez, companheir­os, vocês não são irrelevant­es.

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