ANÁLISE Presidência pode ter desviado finalidade principal de decreto
Intervenções federais estão previstas na Constituição e são úteis também na democracia. São de competência exclusiva do presidente, que precisa de aprovação posterior, de natureza política, do Congresso Nacional.
Em tese, o Direito tem pouco a ver com isso, pois as normas específicas da Constituição são mais para autorizar do que para limitar. Mas não é impossível que a intervenção acabe na Justiça.
O Judiciário vem abandonando a postura tradicional nas democracias de se abster de entrar no mérito de atos políticos, em especial os do chefe do Executivo.
Dois exemplos recentes: o tempo passou e o indulto de Natal e a nomeação da ministra do Trabalho continuam bloqueados por liminares judiciais, algo inusitado.
A Justiça brasileira, incluído o Supremo Tribunal Federal, parece ter perdido o respeito pela alta política.
A suspensão judicial da própria intervenção seria impopular e não muito provável. Mas a boa vontade dos juízes pode ser menor com atos do interventor atacados por vícios de origem do decreto.
O decreto estabeleceu que, para repor a ordem pública, a União fará uma intervenção apenas na área de segurança do Rio de Janeiro, até 31 de dezembro. O interventor, um militar, subordinado ao presidente da República, comandará os órgãos estaduais de segurança em substituição ao governador, podendo fazer requisições de bens, serviços e servidores estaduais. Poderá também requisitar meios de órgãos da administração federal, civil ou militar. DÚVIDAS
FOLHA
manter a segurança nos Estados não precisa de intervenção. Uma lei complementar regula as operações de garantia da lei e da ordem das Forças Armadas (GLO), por iniciativa do presidente, e elas ocorrem com alguma frequência, em articulação com as polícias estaduais.
Na prática, a atuação militar no Rio de Janeiro nos próximos meses não deverá ser muito diferente de uma GLO, o que pode fragilizar juridicamente o ato de intervenção, fazendo-o parecer excessivo, contrário ao princípio da proporcionalidade.
Curioso foi o presidente anunciar que, para votar a emenda constitucional da reforma da Previdência, algo proibido na vigência de intervenções federais, poderia revogar a medida, que depois voltaria. Mas ela não era indispensável para conter o grave comprometimento da ordem pública? É contraditório. O discurso acabou sugerindo que intervenção ou não, tanto faz, algo arriscado para estes tempos de irritação judicial, em que os juízes não hesitam em desconfiar de atos das autoridades.
Dois outros pontos do decreto podem gerar confusão jurídica, quando da execução. Um é a previsão pouco clara de que “o cargo de interventor é de natureza militar”. Talvez apenas se tenha pretendido evitar problemas de carreira para o general nomeado, o que parece correto.
Mas a constitucionalidade seria duvidosa, se depois, se quiser usar a norma para proteger o interventor contra impugnações e acusações feitas na Justiça comum ou com base em legislação não militar.
Outro problema foi o decreto prever que o interventor “não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”.
É um texto vago e, por isso, perigoso, pois o interventor não é um ditador e, por força da legalidade, tem sim de obedecer às leis estaduais.