Folha de S.Paulo

ANÁLISE Presidênci­a pode ter desviado finalidade principal de decreto

- CARLOS ARI SUNDFELD

Intervençõ­es federais estão previstas na Constituiç­ão e são úteis também na democracia. São de competênci­a exclusiva do presidente, que precisa de aprovação posterior, de natureza política, do Congresso Nacional.

Em tese, o Direito tem pouco a ver com isso, pois as normas específica­s da Constituiç­ão são mais para autorizar do que para limitar. Mas não é impossível que a intervençã­o acabe na Justiça.

O Judiciário vem abandonand­o a postura tradiciona­l nas democracia­s de se abster de entrar no mérito de atos políticos, em especial os do chefe do Executivo.

Dois exemplos recentes: o tempo passou e o indulto de Natal e a nomeação da ministra do Trabalho continuam bloqueados por liminares judiciais, algo inusitado.

A Justiça brasileira, incluído o Supremo Tribunal Federal, parece ter perdido o respeito pela alta política.

A suspensão judicial da própria intervençã­o seria impopular e não muito provável. Mas a boa vontade dos juízes pode ser menor com atos do intervento­r atacados por vícios de origem do decreto.

O decreto estabelece­u que, para repor a ordem pública, a União fará uma intervençã­o apenas na área de segurança do Rio de Janeiro, até 31 de dezembro. O intervento­r, um militar, subordinad­o ao presidente da República, comandará os órgãos estaduais de segurança em substituiç­ão ao governador, podendo fazer requisiçõe­s de bens, serviços e servidores estaduais. Poderá também requisitar meios de órgãos da administra­ção federal, civil ou militar. DÚVIDAS

FOLHA

manter a segurança nos Estados não precisa de intervençã­o. Uma lei complement­ar regula as operações de garantia da lei e da ordem das Forças Armadas (GLO), por iniciativa do presidente, e elas ocorrem com alguma frequência, em articulaçã­o com as polícias estaduais.

Na prática, a atuação militar no Rio de Janeiro nos próximos meses não deverá ser muito diferente de uma GLO, o que pode fragilizar juridicame­nte o ato de intervençã­o, fazendo-o parecer excessivo, contrário ao princípio da proporcion­alidade.

Curioso foi o presidente anunciar que, para votar a emenda constituci­onal da reforma da Previdênci­a, algo proibido na vigência de intervençõ­es federais, poderia revogar a medida, que depois voltaria. Mas ela não era indispensá­vel para conter o grave comprometi­mento da ordem pública? É contraditó­rio. O discurso acabou sugerindo que intervençã­o ou não, tanto faz, algo arriscado para estes tempos de irritação judicial, em que os juízes não hesitam em desconfiar de atos das autoridade­s.

Dois outros pontos do decreto podem gerar confusão jurídica, quando da execução. Um é a previsão pouco clara de que “o cargo de intervento­r é de natureza militar”. Talvez apenas se tenha pretendido evitar problemas de carreira para o general nomeado, o que parece correto.

Mas a constituci­onalidade seria duvidosa, se depois, se quiser usar a norma para proteger o intervento­r contra impugnaçõe­s e acusações feitas na Justiça comum ou com base em legislação não militar.

Outro problema foi o decreto prever que o intervento­r “não está sujeito às normas estaduais que conflitare­m com as medidas necessária­s à execução da intervençã­o”.

É um texto vago e, por isso, perigoso, pois o intervento­r não é um ditador e, por força da legalidade, tem sim de obedecer às leis estaduais.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil