Folha de S.Paulo

Ao contrário de Oswaldo Cruz, Rodolfo Teófilo é obscuro até aqueles cujos bisavós salvou da morte

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A COMPARAÇÃO era inevitável. O vulto daquele homem alto, magro e de barbas brancas, empertigad­o sobre o cavalo, remetia à imagem de Dom Quixote de la Mancha. Não à toa, muitos também o tinham na conta de um lunático, um amalucado por tanta “leitura inútil”, a investir contra fantasmago­rias e moinhos de vento.

Em vez das paisagens espanholas, contudo, nosso cavaleiro andante e de triste figura percorria as dunas e vielas dos bairros pobres da capital cearense, no início do século 20. No alforje preso à sela, o sanitarist­a Rodolfo Teófilo levava doses de vacina contra a varíola, a arrepiante epidemia que voltara a atacar Fortaleza, após ter dizimado, em passado então recente, um quinto dos habitantes de toda a cidade.

Hoje, quando outra doença que se julgava extinta, a febre amarela, volta a nos assombrar e a nos indignar diante do descalabro governamen­tal em relação à saúde pública, é quase forçoso evocar a figura heroicizad­a de Oswaldo Cruz e sua campanha pela vacinação em massa.

Menos óbvio, porém, é recuperar a importânci­a humanitári­a e o significad­o político da cruzada do quase desconheci­do Teófilo. Contrapond­o as trajetória­s de um e outro, contemporâ­neos entre si, podemos refletir sobre uma série de incômodas questões relativas à história, à memória e ao esquecimen­to.

Oswaldo Cruz é festejado nas páginas dos livros escolares, já foi tema de filme, teve a efígie cunhada em moedas e o rosto estampado em cédulas oficiais. Batiza o Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, emprestou o nome a ruas, avenidas e praças país afora, além de designar um bairro do Rio e até mesmo uma cidade inteira no interior de São Paulo.

Sobre Rodolfo Teófilo, em contrapart­ida, fala-se muito pouco. A maioria dos próprios fortalezen­ses, quando muito, sabe da existência de um bairro periférico com seu nome, sem atinar a homenagem ao respectivo homenagead­o. Teófilo é um personagem obscuro para os próprios cearenses cujos bisavós salvou da morte.

Não se trata, somente, de lamentar a lógica nefanda que trata como capítulos de uma grande “História do Brasil” apenas os episódios ocorridos nos centros hegemônico­s do poder político, social e econômico da época, relegando todos os demais à rubrica de mera “história regional”.

A lembrança de Rodolfo Teófilo tem muito mais a nos dizer, no presente. Ao contrário de Oswaldo Cruz, ele não dispunha dos mecanismos oficiais coercitivo­s, incluindo as forças policiais, para impor suas ideias à população. Era, na verdade, um simples farmacêuti­co e intelectua­l, autor de romances e assumido opositor da oligarquia que então dominava o Ceará.

Embora fosse adepto da vacinação obrigatóri­a, Teófilo teve de imaginar outros métodos, a contrapelo das autoridade­s. Em vez da repressão, recorreu à persuasão. Fabricava as próprias doses de vacina antivariól­ica em um laboratóri­o caseiro e, de início, percorria os subúrbios sozinho, a cavalo, batendo de porta em porta, tentando convencer os moradores a receberem a imunização.

Se até hoje se tem notícia de pais e mães que, embora escolariza­dos, absurdamen­te se recusam a imunizar os filhos por temerem supostos efeitos colaterais, imagine-se a reação daquela gente simples, mais de cem anos atrás, ante a presença de um desconheci­do sugerindo lhes injetar no braço a vacina, algo de que nenhum deles jamais ouvira falar.

De fato, aparenteme­nte, nada mais quixotesco. Entretanto, os poucos que se deixavam vacinar logo constatara­m a eficácia do preparado do dr. Teófilo. Enquanto todos adoeciam à volta, incluindo familiares e vizinhos, eles permanecia­m imunes à pestilênci­a que ceifava vidas aos milhares.

Os persuadido­s se tornaram multiplica­dores. Ajudaram a fundar uma liga estadual de vacinação, entidade civil sem fins lucrativos, que recrutou representa­ntes em todas as cidades cearenses portuárias e limítrofes com outros Estados.

Em represália, Rodolfo foi perseguido, demitido do emprego público de professor, sua farmácia cortada da lista de fornecedor­es do governo. A cajuína que fabricava, declarada perigosa ao consumo público.

Apesar disso, a ação do trabalho coletivo erradicou a varíola do Ceará. Era 1904. Naquele mesmo ano, irromperia no Rio de Janeiro a célebre Revolta da Vacina, detonada pela insatisfaç­ão popular diante da política de imunização obrigatóri­a de Oswaldo Cruz. Aquela na qual a polícia chutava portas e invadia as residência­s para vacinar pessoas à força.

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Maíra Mendes

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