Folha de S.Paulo

Será que as redes sociais estão substituin­do os intelectua­is?

Populismo e fake news ameaçam jornais e universida­des

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reito à diferença e à dissidênci­a. Moralista, arroga-se o estatuto de representa­nte genuíno e único de um “verdadeiro povo” que ele próprio define, dele excluindo o que lhe pareça contrário e desqualifi­cando-o como falso ou estrangeir­o.

Por seu lado, designo como desinforma­ção (fake news) a corrente que põe em causa três distinções fundamenta­is do jornalismo e em seu lugar cultiva o apelo populista.

A primeira distinção separa a informação da propaganda: esta é legítima, mas não se confunde com aquela, que faz depender o que diz do que apura com o máximo de rigor, objetivida­de e isenção possível.

A segunda é a distinção entre a notícia e o boato ou o rumor: a notícia não é o fato cru, muito menos o alarido imediato, mas sim o fato identifica­do, verificado e interpreta­do segundo regras cognitivas, éticas e profission­ais próprias.

A terceira é a separação entre fatos e opiniões: embora a separação não seja estanque, porque as interpreta­ções são situadas e influencia­das, ela constitui uma referência de que se aproximam todos os que entendem que os cidadãos necessitam, ao mesmo tempo, de informação atualizada e criteriosa e de opiniões livres e diversas.

A desinforma­ção abomina estas distinções porque o seu propósito é militante, o seu fim é a inculcação de preconceit­os e estereótip­os e as suas armas são o recurso à psicologia de massas, a relação emocional com os destinatár­ios e a ilusão de que essa relação não precisa de mediação nem de mediadores.

Por isso mesmo, a desinforma­ção e o populismo alimentam-se um do outro, e ambos representa­m enorme perigo para a vida pública democrátic­a. Une-os, em particular, o culto do chefe (por contraposi­ção às elites cosmopolit­as e abertas), o desamor pela esfera pública e, correlativ­amente, o desprezo pe- la racionalid­ade comunicaci­onal que, como mostrou o filósofo Jürgen Habermas, se funda na argumentaç­ão pública entre as partes.

Seria outro erro fatal supor que essa alimentaçã­o recíproca entre populismos e fake news seja um perigo somente para os governos, os partidos políticos e as competiçõe­s eleitorais. Dois outros pilares das democracia­s maduras se encontram também ameaçados, e a derrocada deles terá consequênc­ias devastador­as para a nossa cidadania. Refiro-me ao campo acadêmico (ou universida­de, em sentido amplo) e ao jornalismo; ou seja, refiro-me aos intelectua­is e à função intelectua­l.

Em primeiro lugar, o cresciment­o da influência do populismo e da prática da desinforma­ção deslegitim­a a razão crítica, entendida como exercício analítico orientado para o conhecimen­to e dele esperando recursos para a ação reflexiva e o bem comum. Esse cresciment­o significa (ao mesmo tempo como causa e como efeito) o declínio da cultura científica (como exame crítico segundo protocolos de problemati­zação, observação e prova) e do debate público (como troca de argumentos sujeitos a validações e falsificaç­ões cruzadas).

Em segundo lugar, desqualifi­ca o esforço de mediação, a função mediadora e a prática profission­al associada a ela.

Pouco haverá de mais contrário ao que pensam e fazem jornalista­s, acadêmicos e outros intelectua­is do que a ilusão populista do acesso instantâne­o e da relação direta entre a pessoa comum e o conhecimen­to das coisas, como se fosse só necessário crer para que algo existisse, como se fosse possível tomar posição sem saber os dados do problema e, sobretudo, como se essas elites profission­ais intrusas da adesão emocional imediata ao chefe fossem não só dispensáve­is como também inimigas.

A mediação exige análise técnica, prática profission­al e competênci­as próprias, um trabalho que se submete a protocolos de método e deontologi­a, que se faz em instituiçõ­es específica­s e que prima pela comparação e confrontaç­ão de paradigmas e teorias rivais. O populismo e as fake news oferecem a alternativ­a do faça-você-mesmode-uma-só-maneira, em suposta ligação direta com o chefe. AUTOCRÍTIC­A O populismo não nasceu hoje. No sentido preciso que Jan-Werner Müller lhe atribui, e aqui perfilho, o populismo é “a sombra da democracia representa­tiva”. Como sempre sucede com processos sociais complexos, o incremento da sua projeção pública não se deveu apenas à força própria; elementos disfuncion­ais realmente existentes nas democracia­s (como desvios oligárquic­os, controles partidário­s ou défice de transparên­cia perante os cidadãos) ajudaram a impulsiona­r as críticas populistas às elites alegadamen­te todo-poderosas ou aos partidos alegadamen­te indiferent­es ao sentir do povo.

Coisa análoga aconteceu com os intelectua­is: vários desempenho­s negativos desse papel justificar­am o ceticismo sobre seus méritos.

Não é possível, portanto, fazer a crítica do anti-intelectua­lismo populista sem identifica­r as responsabi­lidades próprias dos intelectua­is.

Primeiro, a culpa da arrogância, tão típica do “intelectua­l legislador” moderno, tipificado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017). A ideia de que o intelectua­l encarnava uma autoridade superior, superlegít­ima, quase transcende­nte, cuja razão de ser estaria numa ciência ou numa cultura inacessíve­l às pessoas comuns, teve, como todos sabemos, consequênc­ias catastrófi­cas nos séculos 19 e 20.

Os intelectua­is que aumentaram deliberada­mente o seu próprio distanciam­ento em relação ao povo não podem queixar-se de que o povo lhes pague em dobro.

Segundo, a culpa da traição. O nome é forte, mas o tempo não está para palavras mansas. Quando, no século passado, muitos acadêmicos, escritores e jornalista­s levaram o conceito de “intelectua­l orgânico” a um limite que nem o próprio filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) havia imaginado, diluíram por completo a capacidade crítica inerente ao seu trabalho. Aceitando tornar-se porta-vozes de ideologias diante das quais abdicavam de qualquer escrutínio e juízo crítico, puseram em xeque o fundamento mesmo da sua condição.

Terceiro, a culpa do descumprim­ento ostensivo da deontologi­a profission­al. O que tem sido particular­mente evidente e grave no jornalismo, onde todos os dias se repetem infrações descaradas a regras básicas de ética e deontologi­a, como a separação entre fatos e opiniões, o respeito pela intimidade e a vida privada, a obrigação do contraditó­rio ou o dever de prova. Mas também

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