Folha de S.Paulo

Até agora, todos os militares que mudam de sexo são reformados. Mesmo quando são de quadros em que só se permite homens, não é dada a chance de transferên­cia

- NATÁLIA CANCIAN

Ana (nome alterado a pedido) estava havia mais de dez anos nas Forças Armadas. Não tinha problemas de saúde e ocupava posição equivalent­e ao tempo de carreira.

Ainda assim, tão logo comunicou que pretendia deixar o gênero masculino registrado nos documentos para ser reconhecid­a como mulher, foi afastada das funções.

No laudo emitido por uma junta médica, que terminou por aposentá-la compulsori­amente, estava o código CID F640, que aponta “transexual­ismo”. “Incapaz” para a atividade militar.

“Disseram que não sou a mesma pessoa que fez a prova para entrar. Como, se não mudei meu CPF, nem qualquer dado exigido no exame de admissão?”, questiona.

Desde janeiro, o aumento de ações na Justiça e novos questionam­entos de entidades têm elevado a pressão para que as Forças Armadas revejam sua postura em relação a militares transexuai­s —pessoas que não se identifica­m com o gênero atribuído ao nascer e buscam alterá-lo.

A polêmica ganhou o debate público com uma recomendaç­ão do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro para que Exército, Marinha e Aeronáutic­a aceitem transexuai­s em seus quadros. Questionad­as, as três entidades

RENATO MACHADO

Procurador da República informam que a solicitaçã­o “está sob análise”.

“Até agora, todos os militares que mudam de sexo são reformados. Mesmo quando são de quadros em que só se permite homens [e não mulheres], sem entrar no mérito de não aceitarem mulheres, não é dada a chance de transferên­cia”, diz Renato Machado, da Procurador­ia Federal dos Direitos do Cidadão, que abriu inquérito sobre o caso.

A Defensoria Pública da União entrou com ação civil pública para que as Forças Armadas sejam impedidas de afastar transexuai­s da carreira militar.

A medida ocorreu após o órgão receber uma primeira decisão favorável a uma militar afastada da Marinha depois de mudança de gênero (de homem para mulher). “Mas a Marinha ainda não cumpriu a medida”, diz o defensor federal Thales Treiger.

Em nota, a Marinha diz que o processo de aposentado­ria foi suspenso, mas o retorno não ocorreu porque a profission­al “permanece em licença médica”, como estava antes de ser reformada.

Além desse caso, segundo o MPF-RJ, ao menos outros sete afastament­os chegaram à Justiça. “Mas há também casos antigos, quando não entravam com ações”, diz o procurador Machado. NOVA DISPUTA Militares afastadas e entidades se organizam para cobrar a posição do CFM (Conselho Federal de Medicina) sobre os afastament­os após avaliação médica.

Questionad­o, o CFM diz que “não se manifesta sobre casos específico­s” e que o paciente que se sentir prejudicad­o durante um atendiment­o “pode apresentar sua denúncia formal ao conselho regional onde ocorreu o fato.”

Segundo militares ouvidas pela Folha, em alguns casos, a justificat­iva inicial para o afastament­o é o tratamento de saúde —o processo de transexual­ização envolve terapia hormonal e cirurgia.

Foi o que ocorreu com Ana, por exemplo. “Em um primeiro momento, falaram que o afastament­o era para me preservar [durante o tratamento]”, diz. Mesmo assim, finalizado o processo, o retorno não aconteceu.

Situação semelhante ocorreu com B., que era oficial superior da Marinha, cargo que deixou em 2008. Na época, relata, decidiu que faria a transição do gênero masculino para o feminino. “Cada pessoa tem um limite. Quando fiz 35 anos, decidi contar para todos [que era transexual].”

A notícia não foi bem recebida: logo foi colocada de “férias”. Em menos de 90 dias, foi aposentada. “Ainda me chamaram para conversar e dizer que a reforma era melhor, porque eu ia sofrer muito preconceit­o lá dentro.”

Para Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuai­s), os afastament­os denotam discrimina­ção. “É preciso ter instrument­os legais contra isso.”

Segundo ela, além de acompanhar os casos referentes à carreira militar, a associação pretende solicitar ao Ministério da Defesa que mulheres trans que ainda têm o gênero masculino nos documentos sejam dispensada­s do alistament­o obrigatóri­o.

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