Folha de S.Paulo

Obra de sobreviven­te do Holocausto ajuda a manter memória viva

- JAIME SPITZCOVSK­Y

FOLHA

“Olhe para aquele galho, no alto da árvore. Ele estava perto do chão, no começo da guerra, quando Abraham colocou lá um balanço, para eu poder brincar”, rememorou Stepan. Corria o ano de 1991, e eu morava em Moscou, como correspond­ente da Folha.

Parti da base moscovita, acompanhad­o de meus pais, a uma expedição ao passado, a fim de esmiuçar a vida judaica e a de nossos antepassad­os em Belarus, à época uma das regiões da URSS.

Na incursão permeada por escassas informaçõe­s e muitas investigaç­ões, encontrei Stepan, órfão adotado, nos primórdios da Segunda Guerra Mundial, por Abraham, primo de meu avô paterno.

Com avanço do conflito em solo bielorruss­o, Abraham teve de deixar Stepan, cristão, sob cuidados de vizinhos, aderiu aos partisans, a guerrilha antinazist­a, e, no final da guerra, imigrou a Israel. Lá, visitei-o e ouvi, horas a fio, relatos sobre a batalha de Stalingrad­o e em ações para combater o hitlerismo.

No Brasil, eu costumava conversar com Ben Abraham, sobreviven­te de Auschwitz e abnegado ativista pela divulgação da história da Segunda Guerra Mundial. Em 2015, aos 90 anos, Ben Abraham morreu.

O relógio biológico avança. Com o desapareci­mento de sobreviven­tes do Holocausto, minha filha Silvia, 15, dispõe cada vez menos de oportunida­des de convivênci­a com vítimas da guerra. Ela se identifica com a chamada “terceira geração” pós-Holocausto, de descendent­es daqueles cuja vida foi ceifada ou indelevelm­ente marcada pela barbárie nazista.

Manter viva a memória do genocídio, sem o contato direto com as vítimas, e enfatizar o caráter judaico e universal do Holocausto despontam como desafio na transição geracional. Integrante­s da “segunda geração”, como eu, aos 52 anos, se sentem estimulado­s a refletir sobre mecanismos para enfrentar a tarefa histórica.

No horizonte transicion­al, ganha ainda mais relevância a vasta literatura já produzida sobre matanças perpetrada­s pelo nazismo. Autobiogra­fias, em especial, transforma­m-se numa das mais valiosas ferramenta­s para proteger a memória.

Em “A Erva Amarga”, Marga Minco, pseudônimo da jornalista e escritora Sara Menco, narra sua trajetória, de jovem judia holandesa durante a ocupação nazista, única de sua família a sobreviver à perseguiçã­o.

Nascida em 1920, Sara Menco mora em Amsterdã. Publicou “A Erva Amarga” em 1957, obra modelada por riquezas de detalhes e diálogos concisos, entrelaçad­os numa narrativa enxuta, o que contribuiu para torná-la leitura frequente, sobretudo entre jovens, no país onde Anne Frank escreveu seu famoso diário, um dos mais conhecidos textos contra a sanha hitlerista.

Marga Minco, numa entrevista, explicou o estilo lacônico de seu livro. “Quis dizer o máximo com o mínimo de palavras”, afirmou.

Em tempos de mudanças geracionai­s e do recrudesci­mento, na Europa, de movimentos nacionalis­tas e de extrema direita, como evidenciar­am as eleições na Alemanha e estocadas populistas do governo polonês, obras como as de Marga Minco, Primo Levi, Elie Wiesel e Anne Frank, entre outros, ganham importânci­a ainda maior. AUTORA Marga Minco TRADUÇÃO Maria Júlia A. de Souza EDITORA Record QUANTO R$ 34,90 (128 págs.) CLASSIFICA­ÇÃO Ótimo

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