Kim Ki-duk coloca evento em saia-justa
Diretor sul-coreano condenado por abuso físico contra atriz em filme anterior mostrou novo longa e foi questionado
Cineastas alemães, como Fatih Akin, assinaram manifesto pedindo transparência no processo seletivo
Acusações de assédio, fracassos franceses e faroestes desconstruídos marcaram o fim de semana no Festival de Berlim, uma das mais importantes mostras de cinema, que vai até o próximo sábado (24).
Os ecos do movimento “MeToo” permearam a passagem do diretor sul-coreano Kim Kiduk pela capital alemã, onde ele apresentou “Human, Space, Time and Human”.
O filme já é um prato cheio aos críticos que chamam o cineasta de misógino, graças às suas cenas de estupro coletivo. Mas agora é a Justiça também que o acusa. Kim foi condenado a pagar uma multa por ter cometido abusos físicos contra uma atriz do filme “Moebius” (2013).
Em conversa com a imprensa em Berlim, o assunto veio à tona já na primeira pergunta. “Já me expliquei à Justiça”, disse o sul-coreano. “O promotor achou que foi problemático ter estapeado uma atriz. Estávamos ensaiando.”
A mostra também saiu chamuscada do episódio. A vítima chamou o evento de “hipócrita” por ter escalado Kim numa edição em que encampa a campanha do “MeToo”. A resposta do festival é que se trata de uma plataforma de debate.
A organização da mostra também se vê num embate com os próprios cineastas de seu país. Esta será a última edição capitaneada por Dieter Kosslick, no posto desde 2001, grande responsável por ter dado um tom mais politizado ao festival enquanto congêneres como Cannes e Veneza se abriram mais para Hollywood.
Diretores alemães como Fatih Akin (“Em Pedaços”) e Maren Ade (“Toni Erdmann”) assinaram um manifesto pedindo mais transparência na forma de escolha dos filmes e que a seleção esteja à altura dos demais festivais. O documento foi encarado como crítica a Kosslick. Tanto Akin quanto Ade escolheram Cannes para lançar seus últimos filmes.
O tema foi abordado na entrevista do diretor alemão Christian Petzold, que concorre ao Urso de Ouro por “Transit”, história sobre um homem que tenta fugir de Paris durante a ocupação nazista assumindo a identidade de outra pessoa.
Já os franceses decepcionaram. “Eva”, thriller psicológico envolvendo uma prostituta manipuladora (Isabelle Huppert) e um impostor (Gaspard Ulliel) naufragou como o mais criticado.
E “La Prière”, de Cédric Kahn, sobre um grupo de exdrogados acolhidos num centro cristão, gerou confusão por sua abordagem positiva do poder da prece. “Me fascina a ideia de que tanto as drogas quanto a religião podem levar ao êxtase”, disse o diretor.
A Berlinale ainda viu duas tentativas de desconstruir o faroeste. Gênero por excelência do cinema americano, ele é encampado de forma pouco ortodoxa em “Damsel”, dos irmãos David e Nathan Zellner, e “Black 47”, de Lance Daly.
O primeiro faz um recorte feminista, invertendo papéis e quebrando as expectativas. Nele, Robert Pattinson vive um sujeito atrapalhado que parte para o oeste com o objetivo de resgatar a noiva sequestrada.
“Nos faroestes, as mulheres sempre são representadas como desejo ou objeto decorativo”, disse David Zellner. “Mas nós queríamos trazer mais complexidade.”
Já o outro transporta o gênero para o cenário da Irlanda durante a década de 1840, quando o país foi devastado por uma grande fome que ceifou a vida de um quarto da população e obrigou oura porção a migrar para os EUA.
É nesse ambiente desolado que um ex-soldado regressa e resolve encampar vingança sobretudo contra os ingleses, responsáveis pela miséria local. “Sempre fui intrigado com o fato de nunca terem feito um faroeste com esses elementos”, disse o irlandês Daly.
Na briga pelo Urso de Ouro, o russo “Dovlatov” recua aos anos 1970 para falar de censura às artes e parece trazer os ecos autoritários do país dos dias de hoje. O diretor Aleksey German ficcionaliza seis dias na vida do escritor Sergei Dovlatov, morto em 1990.
Como o autor diz que não há “seriedade ou sinceridade nas obras oficiais” soviéticas, torna-se um pária e não consegue publicar seus escritos.
O jeito é continuar como repórter em um jornal operário e escrever, com entusiasmo e sem ironias, sobre inaugurações de fábricas em que operários se fantasiam de escritores russos e comemoram os feitos soviéticos. GUILHERME GENESTRETI se hospeda a convite do festival