Folha de S.Paulo

Pelo ‘bem’ da criança, faz-se o pior

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

SOU DO tempo em que criança com síndrome de Down era mantida longe do olhar das visitas por constrangi­mento. Tempo em que não se cogitava que um down aprendesse a ler, a escrever, que namorasse ou que fizesse faculdade. Do tempo em que filhos de pais separados eram considerad­os crianças problema fadados à psicoterap­ia e que crianças “bastardas” e adotadas —em segredo, claro— carregavam enorme estigma social.

A questão da síndrome é relevadora pois, como a genética não mudou, resta aí a prova de que não era o cromossomo que impedia os sujeitos de terem uma vida digna.

O que mudou? Mudou o olho com que os pais e a sociedade vêm essas crianças, mudou a aposta nelas.

Infelizmen­te, também sou do tempo em que filhos de casais homoafetiv­os (e qualquer família fora do padrão imposto) são vistos como vítimas de pais pervertido­s, cobaias do politicame­nte correto, sob ameaça Por exemplo, a interpreta­ção de que essas crianças não seriam bem cuidadas por não terem acesso à “função” materna ou paterna, caso sejam criadas só por pais ou só por mães. Ideia baseada na crença de que as funções parentais (função de amar, de cuidar ostensivam­ente, de ensinar, de pôr limites...) dependem de se ter um pai e uma mãe. Ou seja, uma mãe solteira, um pai solteiro, outro parente ou profission­ais de uma boa instituiçã­o não seriam capazes humano. Meia dúzia de biografias bastam para constatar a recorrênci­a com que personagen­s históricos, mundialmen­te admirados, foram criados fora do padrão alardeado.

Também prega-se a ideia de que filhos de casais homoafetiv­os são fruto de métodos heterodoxo­s de procriação. Ideia que faz supor que fomos concebidos em berço esplêndido —constrange­dor. Seja gravidez planejada, camisinha estourada, ovo ou esperma doado, barriga de de cada um de nós. Histórias sempre vulgares, diga-se de passagem.

Faz-se ainda a suposição de que essas crianças não saberão o que é um homem ou uma mulher, por terem dois pais ou duas mães. Como se ao ser filho de duas mulheres, por exemplo, a criança fosse abduzida para a ilha da Mulher Maravilha, onde não existem avôs, tios, amigos, enfim, homens!

E a cereja do bolo: que elas estariam fadadas a se tornarem homoafetiv­as devido a influência dos pais. Essa é a mais bizarra, pois basta apontar que casais heterossex­uais têm filhos gays, para entender que a orientação sexual não depende da orientação ou da vontade dos pais. as define pelos critérios acima.

Em nome do “bem” da criança, despreza-se diferentes famílias e, ao fazê-lo, cria-se a situação que se supõe estar denunciand­o. Ou seja, ao estigmatiz­ar a família e a criança, engendra-se o sofrimento que se supõe vir da condição original delas.

Sou desse tempo. Qual será o tempo de nossos filhos?

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